sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Os surdos e a orquestra...


A política de cotas para minorias não-privilegiadas, ou privilegiadas pelo desprivilegio, ou então acometidas de algum infortúnio da ordem biológico-funcional, enfim, a coisa de acolher os desacolhidos era coisa que andava de vento e popa, e com vivas de viva à igualdade, ainda que tirada à força das idiossincrasias misteriosas impostas pelo destino, que sem chamegos de justiça, outorga a cada miserável a cota de miserabilidade que lhe cabe sem consultá-lo ou pedir anuências prévias de autorização. E foi assim, nutrido pelo espírito da boa vizinhança, que reservaram alguns assentos para portadores de audição perfeita na sala de concertos onde a orquestra, até então aplaudida unicamente pela massa surda, tocava. E foi assim que ela própria, a orquestra, foi à falência, tão brutalmente desmascarada em sua desordem rítmica que até os surdos, a partir de então, não tiveram outra alternativa senão voltar a ouvir, rogando que interrompessem os trabalhos e causando novo alvoroço, porque agora, mediante a formação de nova maioria, composta desta vez por ouvintes de orelha afiada, já segregava aqueles poucos e míseros que, afortunadamente, insistiam em permanecer surdos, e surdos tanto para aquilo que não se ouvia porque não era dado a ouvir, quanto para todo o resto de barulho, que por ser barulho - afinado ou não-, exigia ouvintes...
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Enforcamento da Faxineira...


Razões não havia, ou eram tantas que não sobrava motivo algum, somente um desejo incontrolável que Odorico experimentou aquela manhã de, finalmente, enforcar a sua faxineira. E só não levou a cabo o plano porque nunca na sua vida teve uma faxineira que faxinasse os seus curtos domínios domiciliares. Porque havendo uma, uma que pudesse chamar de sua, pensou Odorico, definitivamente não só a enforcaria como também serviria à ela um delicioso chá de camomila açucarado com arsênico. Mas antes era preciso arrumar uma faxineira que aceitasse sem admoestações maiores o seu destino de epílogo dramático, porque Odorico gostava das coisas bem explicadas, e nada do que planejava ficaria escondido nas frestas da sua íntima perversão assassina, não! Uma vez encontrada a faxineira, a perfeita candidata e aspirante ao enforcamento seguido do envenenamento por chá de camomila açucarado com arsênico (quem sabe também não a atirasse janela abaixo envolta num alvo lençol de linho?), Odorico faria questão de travar uma conversa franca com ela, explicando suas intenções da maneira mais cordial e afetuosa possível, convencendo-a de que não havia qualquer sentido em começar uma história entre ambos se não houvesse logo de cara um ápice trágico, qualquer coisa que justificasse o enredo dos dias, e que barrasse a modorrenta tirania das tramas sem sal onde as personagem rodeiam por décadas os próprios rabos até que, chegado o momento fatal, literalmente morrem de tédio sem nunca terem sequer arreganhando os dentes para a sombra. Odorico sabia que as grandes figuras são feito pavios de curta extensão, aparecem e já desaparecem, sem sobra de rebarbas ou desvanecimentos em intermináveis palavrórios sentimentais, e que, por isso, a não ser por profunda falta de espírito da escolhida, concederia à ela, à faxineira sortuda, a chance de virar protagonista, enquanto ele, servindo-se do manto humilde dos coadjuvantes, sumiria nos anais da história como mais um a passar ao fundo do palco sem chamar qualquer atenção, mesmo do mais estrábico dos espectadores colado à cena...
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Depois de repetidas interpretações da 5ª de Mahler, lia-se no epitáfio:
'Aqui jaz aquela orquestra, que acometida de adágios demais, foi condenando seus naipes a enferrujarem num lento e soluçante engessamento lacrimoso, até que não sobrassem forças para ferir as cordas, fôlego para soprar os metais, músculos de suporte às madeiras, coração palpitante para o rumo da percussão, até que tudo parasse, o maestro por cima do púlpito enraizasse, até que o público congelasse, até que o silêncio rompesse, e sem desejos de retorno '...




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Fábulas: # As Cortinas Precoces...


Da algazarra que se seguiu após o final do espetáculo na forma de conjecturas inflamadas sobre a razão do pano haver sido erguido muito antes do combinado - o que acabou por colocar a nu o quarteto de atores que descansava esparramado no sofá do cenário, cada qual com o queixo apontado para cima e sem a preocupação de defender qualquer personagem em solilóquio dramático senão à triste e irremediável máscara que aos envolvidos a providência divina não rogou piedade em maquilar -, chegou como resposta ao conhecimento geral, apimentado pelas odes da surpresa que costuma temperar o inesperado dos assuntos graves, que o público, não informado sobre o incidente imprevisto – e crendo que o que via era o que de fato deveria ver como parte integrante do espetáculo -, não só rendeu fervorosos aplausos àqueles que, desprevenidos, tiveram de sambar para esconder as barrigas flácidas, como não mais conseguia arredar o pé da sala de apresentação - e isso ainda depois de horas corridas quando os atores, evidentemente desesperados, haviam há muito buscado refúgio em seus respectivos camarins -, tamanha fora a gratidão por haver naquele exato instante que recusava-se a desvanecer no limbo esfumaçado da memória presenciado tão incrível performance, que se, como é típico da pouca habilidade de discernimento das massas, não sabia como traduzir, traduzimos nós agora e aqui como a mais cristalina demonstração da verdade da alma humana, quase como um testemunho genuíno e irretocável do grande desespero que é saber-se vivo e diante de um bando outro de gente igualmente viva e que não tem outra intenção na vida senão julgar aqueles que, desprevenidos ou não, cruzam os entroncamentos da existência com as calças nas mãos, performance que ensaio nenhum, mal desconfiava disso o público, daria conta de reproduzir com tamanha contundência dramática, restando aqui, e por que não?, congratular com honras merecidas o anônimo contrarregra, que sabe-se lá por qual motivo, naquela fatídica noite, quis antecipar o ritmo natural do movimento dos astros...
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O misterioso país e sua intrigante engenharia de controle demográfico...


Havia esse misterioso país que ninguém sabia ao certo onde no mapa deitava suas fronteiras, tampouco sobrando registros comprovados de que alguém por lá tivesse visitado os seus domínios, conversado com o seu povo, anotado detalhes geográficos, topográficos ou climáticos, quiçá conhecido a língua de comunicação entre os seus habitantes e qualquer outra espécie de testemunho fotográfico ou documental de que, de fato, o tal país existia para além dos boatos de que havia em algum lugar esse dado pedaço de terra onde era por hábito praticar uma intrigante e jamais vista engenharia de controle populacional. Fruto do conto da carochinha ou não, a curiosidade, em compadrio com a imaginação, vence por pontos a batalha com raciocínio lógico e, esfumaçando a divisória entre o que é real com o perfume da fantasia, absolve-nos de qualquer provável devaneio para dizer que o tal mecanismo referido consistia em levar a público um determinado compatriota para que, diante de um microfone apontado para a praça abarrotada de populares, pudesse ele, enfim, dizer algo de relevante – qualquer coisa que fosse! - aos que lá se reuniam para ouvi-lo. E, como era praxe nunca haver nada de importante para chamar a atenção de tanta gente quieta e com as orelhas atentas, o orador, sempre sorteado a esmo, era, portanto, levado à degola. E assim, em escassez de palavras justas ou novidades importantes, a demografia mantinha sua saúde em perfeito equilíbrio, ceifando do seu quadro de funcionários tantos quantos emudeciam – ou quando ousavam dizer aquilo não valia a saliva de tê-lo dito -, todos pobres azarados, sorteados pelo destino, em condenação por absoluta falta de conteúdo.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Falecimento da Estátua Viva

Por força do matraquear anônimo que levou à baila pública a notícia de que aquela determinada estátua viva havia morrido, exatamente aquela que na praça do coreto e ao lado do chafariz simulava ela própria um querubim a despejar água na fonte dos prazeres, enfim, soube-se que a estátua viva de torso prateado e semi-nua e com um dos pezinhos suspensos ao vento na pose barroca de algum anjo alado-gorducho a apontar o beiço como quem implora ao céu um beijo estalado, ela mesma, enfim, a estatua viva, já não mais vivia. Porém, acostumada a engessar em vida, coube ganhar da morte a rigidez de outrora, ou melhor, dobrada, e dessa vez ainda mais impressionante, porque, enfim, se é hábito de quem vive desmanchar-se sem rigor algum, espera-se do defunto um desleixo de exponencial habilidade, desmilinguindo o esqueleto para nunca mais tê-lo de pé, coisa que não aconteceu, ao menos não com aquela estátua viva, que agora estátua morta, enfim, preservava a placidez de um bloco firme de mármore, e toda ela lapidada na expressão perfeita e imutável dos querubins talhados com esmero, coisa só comparável ao David de Michelangelo que, enfim, não se sabia se antes de ser estátua morta era, de fato, um David vivo, o que se sabe, ou se soube, é que, advento do bulício geral, uma enormidade de afluxo de gentes foram conferir a recém falecida estátua viva, agora muito mais visitada do que quando, enfim, de fato vivia, havendo passado anos até o presente dia sem que um único tônus muscular fosse desmanchado em função da eternidade imposta, período em que, nota-se, não faltaram romarias dos quatro cantos do planeta a celebrar a maravilhosa estátua que antes vivia, e que, hoje, enfim e por fim, e para sempre, condenada estará à celebridade imutável dos blocos rijos de matéria bruta.

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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Fóssil do Homem Honesto...

Em recente escavação arqueológica num dado sítio dos recônditos improváveis da Mauritânia, misturado aos cacos de cerâmica do neolítico, foi arrancado da terra um vaso intacto, em cujo interior, não menos intacto, jazia encolhido o fóssil de um homem honesto, e de preservação tão impressionante que ainda dava-se a sorte de vê-lo balbuciando a sua última frase. O arqueólogo-chefe da expedição requereu, então, que imediatamente lhe trouxessem um amplificador auricular para não perder a chance de ouvir o que aquele Matusalém-Jurássico havia a mastigar tão baixinho, imaginando que a força de seu maxilar não suportasse tanto tempo o rarefeito cheiro da atmosfera moderna e, enfim e por fim, calasse-se para todo o sempre. Uma vez chegado o cone-amplificador, dobrou-se o arqueólogo-chefe até à distância de ser possível captar qualquer mínimo ranger de dentes, e foi então que pôde ouvir em muito claro e bom som:

- Vão todos à merda!


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