sábado, 30 de agosto de 2014

Fábulas: # O cego e a Sala do Silêncio


Um cego esgueirou-se inadvertidamente para dentro da Sala do Silêncio, e como o silêncio já lhe era companheiro de todas as horas – as pupilas aposentadas calavam o zumbido rotineiro daqueles que as tinham em plena forma -, o cego enlouqueceu, somando o vazio da vista com o outro dos ouvidos mudos, forçado pela boca calada dos videntes que na Sala do Silêncio formavam numerosa plateia, e tratou de romper a regra fundamental ao tatear com sua vareta uma possível rota de saída. TEC-TEC-TEC-TEC. Foi censurado, alvo de piadas e chacotas preconceituosas, xingado em sussurros escabrosos até. Conseguiu encontrar a porta e sair. A Sala do Silêncio, então, voltou ao normal, com aquela sensação de que fora feita somente para o usufruto dos menos privilegiados, aqueles que reuniam todos os sentidos sem falhas. Chega de considerações. Silêncio agora.




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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Sou tão limitado no que faço
A consciência de minhas fronteiras atam meus pés em terrenos tão restritos
Minha pessoa é feita de poucas possibilidades
Uma esquina dobrada e já me esgoto
As mangas da camisa que trajo são curtas e nada afeitas a truques 
Parece que por falta de talento em ludibriar-me, naufrago em uma transparência onde engesso-me e sair não mais posso
Não entendo os aventureiros que hoje estão aqui e amanhã já arrumam-se em jornadas arriscadas
Paira sobre mim um medo e covardia fundamentais
Mas será que não tomo gosto por quem sou justamente por conta disso?
Será que não consigo plenamente enxergar-me exatamente porque enxergo tudo o que sei que não posso ser?
Minha cela é minha liberdade
Preso aos meus grilhões desejo preso continuar sendo 

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domingo, 24 de agosto de 2014

Fábulas # O remorso divino

Havendo Deus criado o mundo em seis dias, e notando que o sétimo era justamente o domingo, trocou o descanso pelo remorso e matou-se. Nessa altura Nietzsche já existia, e coube a ele espalhar a notícia de que Deus estava morto. Mas, entre o fato e o anúncio, já era segunda-feira, portanto, tarde demais. A tragédia que se segue é bastante conhecida de todos nós.


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Se tenho lembranças
Obrigado sou
A lembrá-las 
Se não as tenho
Sofro em dobro 
Em esforço
Por inventá-las

Quisera não fosse alvo do tempo
Seja no vazio ou no lamento
Entristeço
Sempre 

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É difícil viver, não?
Que nada!
Mas difícil ainda é ver quem vive
E pouco se vê
Vivendo

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terça-feira, 19 de agosto de 2014

Houve um tempo em que eu acumulava desejos
Hoje eu desperdiço os vazios que não pude - ainda que desejando
Em mim preencher

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Fábulas: # O sujeito incrédulo... e o leão do circo.

Um sujeito incrédulo ao ouvir a notícia de que o leão havia fugido do circo, duvidou, como de costume, e foi até o circo para provar que aquilo não passava de um boato grosseiro, e que o tal do leão muito provavelmente não havia fugido do circo coisíssima nenhuma. Chegando ao circo, de fato, o sujeito incrédulo viu o leão dentro da sua jaula esparramado feito um tapete gigante de pelos e ruminou contente para si próprio: ‘A-há! O leão não fugiu do circo!’. Mas estava também muito triste o leão, com um olhar piedoso de quem adoraria fugir do circo. E como o sujeito incrédulo podia ser tudo nessa vida menos um sujeito incrédulo insensível, apiedou-se de imediato do bicho trancafiado e abriu o gancho de metal da jaula. E, como o leão podia ser tudo nessa vida incluindo um leão faminto, engoliu o sujeito incrédulo em uma só abocanhada. Depois voltou para a jaula para uma siesta, matutando consigo se o melhor a fazer seria fugir de fato do circo, ou, quem sabe, esperar o próximo que lhe quisesse salvar da sua miséria felina...



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