domingo, 30 de setembro de 2012

Acordei gênio!

Acordei com uma única e retumbante certeza: é hoje o dia que escrevo a minha obra prima! Levantei da cama com a convicção de que eu era o portador de uma importante missão cujo esforço criativo repassaria à humanidade um legado de valor inestimável. Nessa manhã, tão logo abandonei o travesseiro, de alguma forma eu já sabia: aquelas pantufas que impediam o contato dos meus pés com o chão gelado estavam prestando um precioso serviço não a qualquer um, mas a um eminente candidato ao Olimpo das artes. É isso! Acordei gênio! - não que ontem eu fosse um asno claudicante e mentecapto da espécie mais comum que desfila por aí na hípica vagabunda da vida, longe disso! Mas, especialmente hoje, eu havia sofrido uma iluminação -, escreveria um livro para entrar no time dos grandes! O espelho do banheiro, ao avistar meu topete desarrumado na ocasião do cumprimento das exéquias matinais, já denunciava... (***vejam os sintomas da genialidade já se fazendo presentes!!! – ‘exéquia’ é um termo nobilíssimo que só alguns poucos escolhidos tem o domínio intelectual para empregar e, ainda mais genial!, associá-lo aos rituais higiênicos do baixo-ventre é o diagnóstico cabal de uma impetuosidade sábia típica das mentes fora de padrão!) enfim, o espelho do lavabo, numa livre e audaciosa adaptação da historinha da Branca de Neve, confidenciava-me aos sussurros: ‘Tu serás o novo ícone da literatura mundial!’ Era um típico topete de gênio aquele! O topete do escolhido! Dentre tantos exemplares dessa raça de seres pensantes, justo eu acabei sendo pinçado para ingressar no panteão dos deuses literários! Ocuparia uma cadeira na Academia Mundial das Letras ao lado de Dostoievski, Shakespeare e Machado de Assis (Paulo Coelho é a faxineira que tira o pó das estantes uma vez a cada quinze dias). Quanto orgulho! O café da manhã que se seguiu irá ficar gravado para sempre na história como o café da manhã que antecedeu a produção da grande obra! O que diriam aquelas torradas besuntadas com requeijão se soubessem do prestimoso auxílio que estavam oferecendo ao emprestar suas propriedades nutritivas aos meus neurônios geniais, verdadeiro exército de massa cinzenta que em breve revolucionaria com suas sinapses o mercado editorial mundial? Liguei o rádio para tentar registrar quais notícias esse dia tão especial se dedicava em transmitir, todas elas ínfimas perante o grande acontecimento ainda reservado à solidão do meu íntimo. Não é curioso imaginar que as pessoas travam a própria vida em função de manchetes tão insignificantes? Não e não! Ainda que o muro de Berlim fosse reconstruído para depois ser novamente colocado a baixo, ainda que os homens de turbante do Bin Laden resolvessem bombardear o Cristo Redentor com ultraleves terroristas, ainda que o Russomanno virasse honesto, ainda assim nada poderia me interromper! Hoje eu acordei com uma única e irrevogável missão: conceber a minha espectral obra prima, um pequeno conjunto de páginas escritas por homem, um gigantesco monumento para o futuro caminho de toda a humanidade. Agora todos em silêncio... vou começar a pensar no que raios escrever. Todo gênio escolhido tem momentos de insegurança. Esse é o meu momento de insegurança. To inseguro. Mas sou um gênio, não duvide... o meu espelho que o diga!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A metafísica das calças frouxas...


Saí de casa com a calça frouxa. Talvez o cinto não tenha cumprido o seu papel, ou então eu emagreci pegando carona com o Fenômeno, que acaba de entrar pro Medida Certa. Só sei que no meio de uma elucubração das mais filosóficas, no auge do ‘ser ou não ser eis a questão’, fui obrigado a puxar o jeans para evitar um diálogo público e imprevisto com as minhas vergonhas. Não que as minhas vergonhas sejam vergonhosas, muito pelo contrário, as minhas vergonhas são tratadas a pão-de- ló, cuido delas com todo esmero para ter alguma coisa com que me orgulhar nessa vida, ainda que a gravidade torne grave o prognóstico de um futuro que há de vir mais cedo ou mais tarde. A questão é que quando minha cueca estava prestes a protagonizar seu discurso à la ‘Bonitinho mas Ordinário’ em plena padaria, local onde me encontrava em trânsito matinal rumo à labuta dos justos, eu sofri uma iluminação! Eureca! Eis o que descobri: o homem evoluído veste calças frouxas! O homem evoluído frequenta constantemente o intervalo entre a descoberta do Bóson de Higgs e a inescrupulosa tarefa de erguer suas calçolas para evitar publicar suas vergonhas nos anais – ou bundais – das revistas científicas. Não confie nunca num sujeito de terno e gravata! O sujeito de terno e gravata anda impecavelmente ajustado ao seu cinto de couro, nunca passando pela sua cabeça que existem vergonhas profundas escondidas por detrás de tanto charme executivo. O terno e a gravata é a armadura dos ímpios, a carapaça dos mentirosos, o casulo dos blasfemadores. Quem usa terno e gravata é um desavergonhado, herdeiro dos iluministas pedantes, todos acadêmicos bobinhos que inventaram os suspensórios justamente para desfilar suas enciclopédias de termos inúteis por aí. Não é a toa que a Idade Média foi o período mais frutífero da história do homem, tempos em que os loucos, dementes e poetas amarravam suas ceroulas com cordinhas vacilantes. Até quando o assunto é religião o elástico frouxo escorrega com força. Imagine Cristo indo para a cruz de terno e gravata? Certeza que não subiria aos céus, nem no terceiro dia, quanto menos depois da posse do Apóstolo Russomanno! Arrisco a dizer que Sócrates proferiu o seu ‘só sei que nada sei’ na urgência de apanhar sua túnica grega que insistia em lhe abandonar os seus gambitos filosofais! A filosofia morreu na era da razão, com todos os seus filósofos protegidos pela ladainha de uma retórica pudica que escondia a roupa de baixo dos bigodudos. Marx foi um chato pateta, um desavergonhado que proibiu a especulação capitalista das calças largas. Deu no que deu: uma revolução abstrata. Tivesse afrouxado a bermuda, teria sido um gênio. É isso! Os escolhidos, os gênios, os profetas, os inteligentes, todos eles abrigam em seus armários um conjunto espetacular de calças largas, ansiosas para lembrar que no fundo, ou melhor, na cintura da vida, nada de importante pode concorrer e superar a consciência de nossas vergonhas. Saí da padaria e passei o dia inteiro entre a cueca e a consciência. Quando embarcava numa nova teoria revolucionária, fruto da minha invejável malhação intelectual, lá me caiam as calças para alertar-me de que os fundos da casa podem sempre colocar tudo a perder. É isso! Sou um privilegiado! Descobri o caminho, ou o tamanho errado, da sabedoria. Vou aposentar todos os meus cintos. Vou afrouxar o que resta do meu guarda-roupa! Virei um homem evoluído!

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O gato, o Lawrence Olivier de bigodes!



O gato é o artista do palco por excelência, o ator dos atores, o Lawrence Olivier de todos os tempos. Frente ao gato não há Cacilda Becker ou Paulo Autran que resista. Em cima do tablado é o gato que reina, enquanto nós, sapiens, naufragamos. O gato olha de soslaio para Édipo e diz: ‘mas que menino mais bobo, matou papai e casou com mamãe!’ Meow! Só um gato para dar conta da potência trágica de um herói grego! Faça o teste e vá assistir no teatro a história protagonizada pelo rei de Tebas na pele de um gato galante. Ator nenhum consegue convencer a mais generosa das plateias com a famosa cena da perfuração dos olhos. O ator humano se esbugalha em cena, berra, grita, chora, corta as tripas na tentativa de transmitir o horror da situação e conclama a audiência para compartilhar da sua interpretação de toureiro com hemorróidas. O gato não. Com o gato a coisa é bem diferente. O gato é econômico. O andar do gato já carrega todo um caminhão de emoções contidas num simples desfilar de patas acolchoadas. O gato é elegante, um mentiroso profissional que jamais exagera em nada. O gato não dá a mínima para nossas crises melodramáticas, ao contrário, o gato passa longe do Leblon do Manoel Carlos e sobe direto ao monte Olimpo. O gato é trágico. O ‘ai de mim’ nada mais é do que uma triste tentativa humana de traduzir o lamento de um felino grego, proferido aos ouvidos de Sófocles. Um único ‘meow’ tem a capacidade de derrubar uma plateia, já a ladainha das frases humanas quase sempre vira uma cantilena interminável que dói nas orelhas dos ratos e morcegos, habitantes dos bastidores de todo teatro. Foi depois de ouvir um ‘meow-miau’ que Aristóteles formatou a sua teoria da função catártica do teatro antigo. Gato nenhum se permite entrar na mansão do Tufão e da Carminha. Todo gato sabe que novela, seja ela Mexicana ou Tupiniquim, não está à altura do seu magnífico domínio da cena. Novelas e séries de TV se dirigem a qualidades artísticas inferiores as do gato. Cães e humanos cabem perfeitamente na categoria de personagens moldadas no formato Maria-do-Bairro. Labradores são sempre melodramáticos. Investigue o curriculum de um labrador e verá que o focinho freqüentou o Studio Fátima Toledo ou a Escola de Atores da Rede Globo. O gato ri dessa bobagem toda. O gato sobe ao trono da magnificência dramática, não se rebaixa a figuras medianas freqüentadoras de padarias. O gato é o proprietário do teatro, nós os tristes inquilinos. Shakespeare só foi capaz de compor a sua monumental obra porque afagava um gatão peludo que ronronava no seu colo enquanto escrevia o ‘ser ou não ser [meow] eis a questão’. Se houvesse um teste vocacional que reunisse homens e gatos, não haveria qualquer chance para nós, humanos aspirantes à arte de Dionísio. É o gato o dono da ancestral arte do fingimento. Inevitável persistir. Não há curso de interpretação que nos faça sequer raspar o talento dramático de um bichano de bigodes longos. Pobres mortais de consciência desenvolvida! Queimem os métodos, fechem as escolas, tapem os ouvidos para a tonelada de teorias e... comprem um gato! O gato é o mestre da cena. O gato, só o gato! 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Haiti não é aqui... mas a China é logo ali!




O barateamento da ponte-aérea Pequim-Praça-da-Sé tem ajudado a aumentar a ocorrência de um fenômeno moderno batizado pelos especialistas demográficos com o nome de ‘chineização-da-população-da-terra-da-garoa’. Antes acostumados ao ônibus-leito que cumpria a rota Marco-Polo-Rodoviária-Tietê, os habitantes da terra-do-espetinho-de-escorpião-frito costumavam chegar em menor número a nossa querida cidade. Agora, porém, seduzidos pelos preços mais em conta em razão da concorrência entre as companhias aéreas, não é raro observar congestionamentos homéricos de Boeings 747-400 da Air-Xing-Ling na pista de pouso de Congonhas – muitos dizem que a 23 de Maio enciumou-se ao ver o seu reinado de estacionamento-a-céu-aberto ser ameaçado com um xeque-mate pelos mastodontes do Mao-Tsé-Tung. O fato é: um formigueiro diário Made-in-China passa pelas nossas alfândegas, depenando todo e qualquer free-shop que apareça no meio do caminho. Os gafanhotos do Antigo Testamento caberiam em duas kombis, se comparados ao contingente de olhos puxados que desembarcam religiosamente até nós. Resultado óbvio: é chinês pra tudo quanto é lado! É só sair na rua para dar de cara com um chinês. O fenômeno de chineização da capital da fumaça atingiu tal extremo que medidas jurídicas já começaram a ser tomadas para abolir o tradicional bairro chinês, o sempre fedorento e agridoce China Town. O motivo é mais do que justo, já que não há mais razão para privilegiar um único bairro com o título oriental sendo que a China está literalmente espalhada por toda a Town. Há quem defenda que o antigo quadrilátero-do-rolinho-primavera vire um gueto ao contrário, abrigando agora os legítimos filhos da terra do Padre Anchieta – tremores na bancada dos defensores dos direitos humanos! Contra a separação das raças! Direitos iguais a todos! Nada como um DO-IN chinês no cocuruto para acalmar os nervos e adiar, pelo mesmo por enquanto, a inadiável revolução da Praça-da-Sé-Celestial, eternizada pelos arquivos jornalísticos na foto da figura de um vendedor de churrasco-chinês proibindo a passagem de uma fila de camelôs-blindados! O fato é: espirre prá ver! Um chinês aparece imediatamente lhe desejando ‘saúde’ em mandarim! Tem chinês saindo pelo ladrão. Outro dia estava eu distraído a navegar pela internet – mares até então nunca d’antes ameaçados pela frota do frango-xadrês -, quanto eis que a foto de um Chinesinho brejeiro aparece na minha página do Facebook, pedindo encarecidamente para que eu o aceitasse no meu rol seleto de amigos ocidentais. O que fazer? Recusar seria pior, afinal, quem nunca balançou na base ao ouvir falar da grandiloquente estratégia militar empregada nos tempos da dinastia Ming quando todo o exército Chinês conseguia ocupar o terreno inimigo em não mais do que cinco minutos? Os livros de história não deixam mentir! Quando o negócio é ocupar, a China domina a técnica do arrastão, técnica essa que aos poucos foi sendo transmitida para a torcida do Corinthians, hoje sediada num dos bairros mais chineses da nossa cidade, o bairro de Xangai-Itaquera. Exatamente a mesma técnica de ‘dominô-geral’ é empregada também nas ruas do centro de SP, como o que ocorre rotineiramente na conhecida rua de bugingangas chinesas, grafada pelo nome de 25 de Março. Resolvi não titubear e aceitei o Wai-Chu-Tai como meu brother virtual. Terrível ideia! Na semana seguinte quase toda a minha lista de amizades era composta por chineses, uma legião de amarelos que eu nunca na vida havia travado contato pessoal, mas que lá atracavam em segurança e sem qualquer cerimônia, promovendo uma verdadeira Cruzada chinesa via banda larga. E o incrível aconteceu. Ao lavar o rosto pela manhã, depois de acordar normalmente, notei um leve abaulamento da circunferência ocular de ambos os olhos. Olhei-me no espelho. Espanto! Estava virando eu próprio um Chino! De noite o processo já estava resolvido por completo: agora eu era um legítimo Chinês em terras Paulistas. E uma vez Chinês, sempre Chinês! Como diz o famoso hino do clube rubro-negro Chinês, fundado por chineses-paulistas em terras cariocas – que paulatinamente também vão sofrendo processo orientalizante semelhante. A questão é: o mundo está virando uma China, com chineses saindo pelo ladrão. Muralha da China nenhuma dá conta de impedir a maré-tsunami-de-chineses que diariamente nos engole. Talvez seja necessária uma campanha de Des-Chinização completa do planeta, iniciando com a temporada de caça-ao-chinês. Enquanto isso não acontece, o jeito é programar umas férias na Groenlândia. A Groenlândia, pelo que ouvi falar, ainda não foi invadida pelos chineses... talvez caiba a mim, o novo Marco-Polo-Tupiniquim, essa tarefa de colonização. Mas não fale alto! Não quero seguidores! Só desejo um pouco de paz de espírito, todo chinês recém convertido aos olhos puxados tem direito a um pouco de sossego... São Paulo virou uma China comunista, não dá mais! Vou comprar minha passagem. Groenlândia, aí vou eu!

domingo, 16 de setembro de 2012

O princípio encalacrador da vida...



Viver é encalacrar-se. O sujeito mais admirado nos tempos que se seguem é o encalacrado. Encalacre-se e verá, será respeitadíssimo, motivo de admiração e orgulho para seus colegas e familiares. Até mesmo a sociedade adora render homenagens orgulhosas ao encalacrado filho de sua terra. O encalacramento é um processo lento e gradual de fabricação de nós cegos à prova de desatamento que acaba sempre numa região sem retorno, mais conhecida como beco-sem-saída. O beco-sem-saída é um território altamente desejado pelo aspirante ao título de encalacrado. Há várias maneiras de trilhar o rumo da encalacração. Quem compra um carro já está no caminho certo, embora não seja possível trilhar caminho algum dentro dessa lata de alumínio quente, especialmente projetada para ser admirada no seu estado de preguiça mórbida, bem no meio de um congestionamento-monstro. O congestionamento, por isso mesmo, é uma etapa segura para o sujeito que deseja encalacrar-se profissionalmente. O encalacrado jamais aceitaria deslizar sem rumo com o vento a lhe bater no rosto. Não! O encalacrado faz de tudo para não sair do lugar e isso lhe cai muito bem. No rumo da encalacração é urgente e necessário procriar. Todo encalacrado exige rebentos que lhe representem no futuro, transmitindo sua herança genética para sucessores que nada tem a ver com a encalacração de quem os predestinou a uma futura e próspera encalacração. Um encalacrado nunca se admite sozinho, muito pelo contrário, a vida de um encalacrado é repleta de berros, uivos, choramingos, lamentos, risos, gargalhadas em coro. Não há monólogos na encalacração diária de um encalacrado, apenas elencos gigantescos que o forçam a sumir no meio do corpo de baile. Faz parte do regime encalacratório fugir do foco do holofote para botar outro desavisado no alvo das atenções. Não há maneira de se tornar um legítimo encalacrado se não houver uma árdua batalha cujo intuito final é a conquista de uma vaga de emprego numa grande empresa ou numa repartição pública. Todo encalacrado é um ótimo funcionário. Todo encalacrado sabe que passará a vida inteira apertando eficientemente os mesmos botões até conseguir chegar à gerência, quando poderá ensinar aos estagiários-encalacrantes a maneira correta de fazer aquilo que até um chimpanzé analfabeto saberia executar. Todo encalacrado veste terno e gravata e se orgulha de passar calor debaixo do sol tropical. O figurino encalacrante é um ótimo emblema da eficiência encalacratória do seu dono encalacrador. Todo encalacrado tem um regime alimentar digno da sua fartura monetária. O encalacrado não economiza garfadas suculentas em gorduras nobres, aumentando a circunferência da sua pança para que suas tripas internas sejam admiradas pela junta médica na iminente lipoaspiração escultural. Todo encalacrado sempre se preocupa com o amanhã, tratando o momento presente como uma vagabunda de esquina para justamente garantir mais ingredientes encalacratórios num futuro remoto. O encalacrado também é erudito, instruído na arte de morder e assoprar para nunca correr o risco de se comprometer perante o julgamento alheio. Existe toda uma técnica que oferece ao encalacrado a qualidade de dizer um monte de coisas sem dizer absolutamente nada, ao mesmo tempo em que é possível escrever laudas e mais laudas de uma escrita impecável e absolutamente vazia de propósito. O erudito encalacrado adora promover e participar de reuniões. São nas reuniões que o encalacrado limpa a voz para defender teses sobre a influência do esmalte cor-escarlate no dedinho mindinho da mão esquerda em tempos de seca atmosférica. São nas reuniões que o encalacrado consegue torcer o seu bigode com as pontinhas dos dedos e demonstrar aos outros companheiros de encalacratice que o charme de viver está em produzir encontros de tédio. O encalacrado adora correr atrás do próprio rabo só para provar aos outros o quanto o seu rabo é digno de ser perseguido por ele próprio. O encalacrado é comedido, não se presta a esforços inúteis, afinal, já que não é permitido interferir no movimento de rotação da terra, para que se preocupar? O encalacrado morre tarde, mas feliz, reconhecido por todos como um emérito cidadão atador de nós das necessidades públicas.  

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Enxuguem as lágrimas, caminhar é sempre mais interessante!


Não acredito que o papel do artista seja esmiuçar as suas entranhas emocionais para oferecê-las ao espectador, isso mais parece com um exercício autoritário de auto aceitação, distante de qualquer generosidade poética. O artista, ao contrário, deve sumir, desaparecer, evaporar, fugir do seu íntimo e abrir espaço para deixar passar a obra que deseja comunicar. O artista deve forçosamente estar à se
rviço de algo maior do que a si próprio, e toda tentativa de aproximação emotiva é um passo na direção de reduzir a poesia. O artista, para manter plena a sua arte, nunca deve encontrar-se naquilo que quer dizer, deve permanecer estrangeiro, longe para produzir intervalos. Os intervalos são mais importantes do que qualquer coisa. O vácuo, o silêncio, a pausa, a incomunicabilidade entre artista e obra é tão ou mais importante que a sua assimilação interna. Essas fissuras vazias não querem dizer que o artista está isento daquilo que faz, apartado de envolvimento pessoal. Ao contrário. É a distância que o permite conduzir. E conduzir é infinitamente mais emocionante do que perder-se na lágrima que brota de si próprio. Conduzir exige chamar o espectador para uma jornada. Não há jornada se não há a abertura de espaços para caminhar. A jornada é o que conta. O resto é recheio vaidoso sem valor algum.

To be or not to be... ouçam a barata!



O homem é covarde, um covarde de firma reconhecida no cartório, covarde de carteirinha. Numa disputa entre covardes o homem concorreria consigo próprio. Não há concorrentes à altura do homem em matéria de covardia. A covardia é um atributo humano, animais não são covardes, os bichos podem ser frágeis, fracos, doentes, mas não covardes. Covarde só o homem pode ser. O homem é covarde porque se diz corajoso, fingindo ser muito maior do que de fato é. A consciência, essa voz metafísica instalada dentro da cabeça de cada um de nós e que não se cansa em repetir a famosa ladainha ‘penso, logo existo’ é a responsável por toda a farsa. Maldito Descartes e toda a corja de iluministas! Iluminaram o nosso ego mentiroso e covarde, e só! Os loucos da Idade Média eram muito mais sinceros e apaixonantes que os seus sucessores da era da razão. A razão trouxe junto a consciência. A consciência é o silicone moral, uma prótese que tenta a todo custo levantar a auto-estima para provar que a nossa existência não é um mero acidente, mas produto de uma missão altamente importante que servirá de exemplo primoroso aos nossos semelhantes. Para justificar o quão covardes somos, criamos a ideia de Deus e todos os personagens que dão suporte a esse herói invisível que no auge do seu tédio celestial resolveu brincar de criar avatares para matar o tempo. Somos tão covardes que precisamos acreditar que somos únicos. Únicos e humildes, porque faz parte da covardia se colocar na posição de vítima do mundo, de ovelha do rebanho, triste coadjuvante num enredo cujo protagonista é o outro. Covardia e coragem são faces da mesma moeda. Moeda escondida dentro do bolso humano. A barata é a prova irrefutável de que somos todos covardes. Na intimidade do seu lar, o mais invejável dos representantes humanos hesita quando avista um baratão atravessando o chão de sua residência – não é a toa que a indústria química lança a cada ano um novo spray anti-barata, tentativas sempre frustradas de se fazer prevalecer sobre o ser abominável do esgoto. Inclua a cena do Rambo sendo pego desprevenido por uma barata que faz coceguinhas no seu pé de salvador da pátria e ele imediatamente larga a metralhadora para virar apresentador de programa de fofoca nas tardes da televisão. Isso sem contar as inúmeras marcas de chinelos e tamancos que, a rigor, não servem tanto para calçar os pés, mas para oferecer uma distância segura entre a mão do sujeito e o inimigo de antenas que se espreita cambaleante pelas frestas do lar. Se a barata tiver asas e puder voar, então, é como se toda a dignidade ética e moral da nossa raça fosse imediatamente embora pelo ralo. Nenhum mestre de academia sobrevive ao vôo de uma barata tropical. Se Gregor Samsa acordasse no seu quarto transformado não numa barata, mas numa lagartixa, a história de Kafka perderia toda a força. A barata é uma afronta ao destino humano, o último estágio da decência que supera aquilo que ambicionamos ser. As unhas são outro índice da nossa covardia. Basta ver as unhas de um homem para comprovar. O leão só é o senhor da selva porque carrega junto às suas patas garras enormes. Leve o bicho numa manicure e ele voltará para seu habitat mais manso que um gatinho de pelúcia. Hamlet não consegue agir porque suas unhas são curtas, podadas na mesma medida da sua elegância intelectual. Complexo de Wolverine – Oh maldita queratina que não me deixa vingar a morte de papai! É isso. Somos todos covardes. Unha, barata e consciência... uma combinação improvável, mas que desmancha toda a petulância moral que nos serve de figurino para brilhar em cima do palco da vida.