quinta-feira, 5 de julho de 2012

Diário de um homem preso dentro d’uma garrafa lançada ao mar...



É isso, enfiei-me dentro d’uma garrafa e lancei-me ao mar, sujeito ao sabor das ondas, ao curso das marés, às intempéries variadas. Uma rolha preserva o pouco de ar que aqui dentro respiro, e impede que a ventania lá de fora traga para dentro a água salgada, afundando-me para sempre das vistas dos habitantes da terra e do ar. Girando nessa superfície lisa e cambaleante, olho para cima e vejo a imensidão do céu, abaixo de mim o fundo invisível do solo marinho, dois cenários opostos e de grandezas imensuráveis. Pertenço a esse lugar de intervalo dos infinitos, equilibro-me na beirada do abismo para que veja o quão ínfima é a minha capacidade de alterar aquilo que me rodeia. Um passo adiante e o mundo me engole, sem testamento que dê continuidade as minhas patéticas pretensões de permanência. Onde estou é impossível falar, o silêncio se faz absolutamente necessário para todo aquele que quiser seguir o meu exemplo e se atirar dentro de uma garrafa para os braços do oceano. O eco de uma única palavra pronunciada aqui dentro já seria suficiente para romper o meu tímpano, já muito castigado pela surdez barulhenta da superfície. Permaneço em silêncio para escutar a vibração vazia do movimento que me carrega para longe. Trago comigo um pedaço de papel, mas não espere que eu produza um documento com as poucas ideias que ainda me sobram, o motivo da minha escrita é estritamente pessoal e só me dou a esse direito para celebrar a impossibilidade de ser útil ao leitor que por ventura vier a compartilhar daquilo que vivi. Por isso que escolho enfiar-me numa garrafa, a ideia é não esperar por resgate, e se por acaso aportar na sua ilha, será apenas por uma breve ocasião, sem qualquer direito a visto de permanência. Logo voltarei ao oceano para nunca mais vê-lo. Meu destino é flutuar por esse horizonte azul, longe dos barcos e das cartas náuticas.  O que falta ao mundo é a impertinência dos náufragos anônimos, seres de alma corajosa que se atiram ao mar para fugir do conforto das ideias comuns.  Desisti de tudo, tornei-me um exilado. Emigrei para longe dos trecos contemporâneos, esvaziei meu coração dos mimos sentimentais dessa nossa época de neuróticos depressivos. É nesse lugar em que estou, totalmente liberto das demandas de qualquer partido político, feliz pelo direito de crer e duvidar de tudo ao mesmo tempo e a qualquer hora. Um Brás Cubas engarrafado. Morri para o mundo.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O futuro de Fulano de Tal...



A máquina Golifius tinha acabado de chegar à cidade. Todos os habitantes, dos mais humildes aos mais nobres, foram recepcioná-la. A pequena banda de sopros da prefeitura ensaiou meses a fio para não fazer feio no grande evento. As meninas, acompanhadas de seus pais, trajavam vestidos de cetim de cores claras. Por cima das cabecinhas, um laço enorme de rendas. Os ternos dos cavalheiros foram desentocados dos guarda-roupas. Gravatas e cartolas davam a importância da ocasião. Até mesmo as senhoras, normalmente recatadas e entregues as labutas do lar, saíram às ruas para ver a chegada da máquina Golifius. Os meninos resolveram não participar, preferindo dar continuidade à peleja no campinho de terra batida Já a comunidade canina estava representada por dois vira-latas sem nome, que entre uma coçada e outra no lombo sarnento, apontavam os focinhos na direção do espetáculo. À tarde de sol imprimia ao desfile uma luz âmbar, tornando tudo ainda mais fantástico. O vento entrava num compasso de adágio majestoso e fazia esvoaçar tudo o que tocava. A cena tinha um aspecto curioso de filme antigo, desses que a gente volta à fita para rever um cenário que sabemos não existir mais. À frente do grande equipamento estava Radamés-Nhócoli, o grande e respeitado empresário da máquina Golifius. Quando finalmente o cortejo estacionou na praça principal, Radamés-Nhócoli subiu num pequeno palanque e começou o seu discurso. Falava bem, com uma voz clara de quem não mente. Explicava todas as características e funcionamento da sua obra, detalhando cada peça e o seu papel dentro do gigantesco mecanismo ao qual fazia parte. Quando terminou, os espectadores já estavam convencidos da importância magistral da máquina Golifius. Difícil recuar no tempo e imaginar como seria a vida sem essa espetacular obra da engenharia científica. O público ouvia calado, absorto em pensamentos sublimes. Até a coceira dos vira-latas deu um trégua. Era a própria confiança que enchia o peito dos habitantes da pequena cidade. Quem não gostaria de abandonar o árduo ofício na roça para trabalhar no funcionamento da majestosa e espetacular máquina Golifius? Fora a fama que certamente recairia no colo do funcionário contratado – a foto na primeira página do jornal do dia seguinte estava certamente garantida -, havia a questão de experimentar de uma vez por todas a sensação de pertencer ao mundo moderno. Era de conhecimento geral que a máquina Golifius representava o que de mais novo a indústria moderna poderia construir. Só uma rápida olhada nos seus mecanismos expostos já era suficiente parar provar tal teoria. Curiosamente, ninguém pensava ou falava no salário, embora soubessem, por alguma estranha convicção, que o montante compensaria o suor da empreitada. A bem da verdade, não era difícil encontrar quem se dispusesse a fazer tudo de graça, sem ganhar nem um tostão. O mais importante era vestir o uniforme de empregado da máquina Golifius, custe o que custasse. E então, chegou o grande momento! A tensão estava no ar. Dali a instantes, saberíamos quem seria o contratado para o emprego. Havia somente uma vaga para o trabalho, mas isso não minava as esperanças dos presentes, só aumentava a ansiedade. Senhas foram distribuídas à multidão. Um a um, cada um a seu tempo, foi chamado para uma entrevista particular. Uma banca especializada iria dar curso á seleção dentro de uma pequena tenda armada ao lado do coreto. Algumas pombas pousaram no teto da armação e lá de cima soltavam aquele som gutural, típico da espécie. Empresários dos mais variados setores formavam essa junta de técnicos altamente especializados no recrutamento das qualidades necessárias para dar funcionamento a uma máquina do porte da Golifius. Era preciso analisar cada candidato e de forma bastante minuciosa. Número 45! O silêncio era quebrado por um senhor barrigudo e de bigodes que davam a volta no quarteirão, provavelmente um representante do alto escalão das empresas Golifius. O candidato, suando e pálido como uma folha em branco, se dirigia a passos trôpegos até sumir pela entrada do gabinete improvisado. Para os que lá fora permaneciam, esperando sua vez de entrar, a única coisa que conseguiam ouvir quando forçavam a escuta era a sinfonia das aves, que lá de cima se postavam como arautos da crise de Tebas. Ao final do processo, depois de cumprir com todas as entrevistas, o resultado foi divulgado. Fulano de Tal havia conseguido a vaga! Sua família quase desmaiou de emoção ao ouvir o anúncio de seu nome. De fato, no dia seguinte, Fulano de Tal estampava sua foto na primeira página do jornal. O restante dos habitantes voltou a empunhar a enxada, instrumento nada sofisticado, mas altamente eficiente na localidade da roça. Fulano de Tal ganhou seu uniforme e sumiu da cidade, levando sua família. Muito tempo depois, soubemos que Fulano de Tal tinha enriquecido muito. Prosperou como ninguém. Quando perguntavam seu nome, dizia com orgulho: ‘Sou Fulano de Tal, empregado da máquina Golifius’.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Os palhaços tristes da história!



Quando os soldados da força policial O*O levaram para a forca a dupla de palhaços engraçados, o general Hilário-Rabuja comia tranquilamente um sanduíche de mortadela no sofá da sua casa. Buurp, foi o som do seu arroto. A regra que vigorava era clara: quem risse ou fizesse rir, virava presunto. Nessa sessão de frios, triste congestão tiveram as hienas da África, obrigadas a engolir sua ironia e migrar para um campo de falta de concentração na ilha de Cuba, onde mais tarde morreriam de rir do ditador bigodudo que fumava há séculos o mesmo charuto de folha de uva. Bingo! O comunismo estava por trás de tudo! Como sabemos? Descoberta fartamente documentada pelo agente Ethan Hunt que adentrou as fronteiras do politburo russo para flagrar Stalin seriíssimo, ensaiando secretamente a coreografia do ‘ai se eu te pego aiai’. Palhaçadas? Só para desertores do movimento. Em terra de revolucionários, quem move os lábios para cima sai da fila e vira traidor da pátria. E o povo? Quem tem por pai bufões barbudos, sisudos e tristes, jamais deve rir! Desrespeito mortal! A revolução que faria o proletariado subir ao poder não permitia nenhuma piada. O primeiro capítulo do manifesto dizia de forma peremptória que era dever de todo camarada de bem fechar a cara, armar-se com sua foice e martelo e ceifar todo e qualquer soluço involuntário que brotasse bem lá no âmago da região abdominal. Onde? Cientistas políticos da China de Mao investigaram meses a fio a região íntima responsável por dar origem ao impulso pecaminoso da ironia. Após passar pelo território dos gemidos orgiásticos do ponto G – sem gozar! -, chegou-se finalmente a conclusão de que o riso eclodia em alguma localidade diafragmal entre o umbigo e o apêndice cartilaginoso das costelas, mais conhecido no linguajar medicinal como processo xifóide. Bingo²! Era lá mesmo que o veneno se aninhava, dentro de uma concavidade gástrica, oca e escura, longe das sinapses iluminadas do intelecto pragmático! Triste confusão. Alguns espiões da KGB confundiram o diagnóstico com dor de barriga, metralhando uma série de inocentes que corriam desesperados em busca de um banheiro público na Praça Vermelha! Os laxantes foram recolhidos das farmácias em caráter de urgência até que todo o equívoco fosse esclarecido. Nenhum camarada queria correr o risco de ser pego pelo rabo e entrar para os anais da traição como alguém que só fez merda na história revolucionária. Burrrrp, nova interferência vaporosa de nosso general Hilário-Rabuja. Ai de mim! Tragédia sem graça! E por falar em Aristóteles, o companheiro Karl, Karl Marx, tratou logo de confiscar o tratado que o filósofo escrevera sobre o gênero cômico, fazendo sumir, inclusive, a máscara sorridente que fazia par com sua gêmea triste, ambas formando até então o símbolo milenar do teatro. Nada de emoções baixas, agora só a catarse vigorava! Aristófanes e Moliére entraram para a lista de procurados da justiça, cujas cabeças vivas valiam algo em torno de um pacote de Café Pilão para socializar com a família. As recompensas eram polpudas e sedutoras, justamente para se evitar o contágio com o escárnio capitalista. Toque de recolher geral! Rapidamente todos os sacos-de-risada foram confiscados das lojas de brinquedo, deixando milhares de crianças chupando o dedo. E por falar nessa fase etária nefanda, comumente associada à troça e zombaria, foi designada a cada família uma máscara de ferro para ser acoplada ao rosto juvenil, de modo a evitar qualquer sinal físico de achincalhe sardônico que viesse a atrapalhar a árdua batalha do partidão. Mais tarde toda essa classe infantilóide iria amadurecer, agradecendo aos seus parentes obtusos a chance de ocupar cargos burocráticos no funcionalismo público da máquina estatal. Quem não gostaria de virar um funcionário público e carimbar despachos do grande pai até o fim dos seus dias? Foi a partir dessa experiência incrível que Kafka homenageou o progresso humano ao psicografar sua obra-prima ‘O Processo’. Buuuurp. Enquanto o general Hilário-Rabuja assistia pela televisão a prova inconteste de obediência dos norte-coreanos ao seu líder recém morto, mestre Lin-Kiu-Ping-Pong, aqui, nos trópicos do ocidente, o exército da chanchada-careta decretava a lei do bullying mental, convocando a todos para marchar na Paulista em homenagem ao enorme progresso do cabresto do intelecto. O povo unido, jamais será vencido! 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O sacerdote picareta...



O andarilho a que todos chamavam de o novo Buda resolveu quebrar o silêncio e se dirigir ao povo que o seguia havia séculos. Até então nunca tinha aberto a boca para dizer nada. Ninguém conhecia a sua voz. Subiu numa pedra para que ficasse num plano mais alto e disse as seguintes palavras a sua multidão de fiéis apaixonados: ‘Parem de me seguir! Não faço milagres! Tenham a coragem de conviver com suas próprias misérias e me deixem em paz com as minhas’. E se calou para nunca mais falar de novo. Depois do breve e surpreendente pronunciamento, o andarilho caiu numa deslumbrante gargalhada que o fez rolar ao chão. Divertia-se como nunca. Foi tomado como louco. Todos o abandonaram. Depois de não sei quanto tempo experimentava novamente a sensação de ficar sozinho. ‘Que benção’, pensou ele! Um profeta verdadeiro não deve rir. A vida é por demais séria e perigosa para se abrir espaço a interlúdios de loucura. Nesse instante percebeu o quanto tinha se tornado um picareta. E se salvou.        

terça-feira, 12 de junho de 2012

Os Anões Ultramarinos da ONU no Brasil...



Quando a comitiva de anões da ONU – Organização dos Nanicos Ultramarinos – aportou na baía de Guanabara, já era tarde demais. Os ursos polares já tinham dominado as dependências do Piscinão de Ramos e almoçado todos os funkeiros que por lá rebolavam. Na falta de focas albinas no cardápio, foram de tchutchucas e tchuchucos. Embora um pouco salgada demais, a carne mostrava-se tenra e macia. O único inconveniente, segundo os próprios consumidores, estava na fase da digestão, constantemente interrompida por um desconforto abdominal que chamavam de pancadão-do-tigrão. O aquecimento global havia chegado ao seu limite máximo, de forma que já não era mais possível encontrar em parte alguma nem mesmo um par de pedrinhas de gelo pra mergulhar na caipirinha. O êxodo polar se deu de maneira bastante comovente, com toda a população restante de ursos, focas e raposas cantando em coro o ‘adeus amor eu vou partir’ numa jangada próxima a costa do Canadá. O evento foi transmitido ao vivo pela Globo, com trilha sonora da Celine Dion. A verdade é que a repercussão global foi tamanha, criando-se inclusive um programa humanitário batizado de ‘Foca Esperança’ para arrecadar fundos, que alguns náufragos-da-geladeira acabaram sendo adotados por uma comunidade de fazendeiros do Texas, o que exigiu a imediata tosa dos casacões de pele. Mais tarde se soube que o comércio de lã para o fabrico de cachecóis havia ultrapassado a famosa indústria agropecuária do local, tornando o Texas o maior exportador de vestimentas para inverno do mundo inteiro. Quem nunca viu o outdoor mostrando o Bush tremendo de frio, com a cabeça enfiada num baita gorro de pom-pom rosa de pelo de urso? Os órfãos do ártico que permaneceram no Texas acabaram constituindo família e se acostumando com a nudez, inaugurando dali a pouco tempo a primeira praia nudista para ex-ursos polares do planeta. Grande parte do contingente de focas preferiu migrar para a Finlândia. Os vikings prometeram receber as novas inquilinas com um belo par de chifres na cabeça. Quem não gostou nada disso foram os alces canadenses, que tiveram de permanecer onde sempre estiveram, ruminando a mesma grama verde de sempre. A relação entre os Vikings e as focas deu tão certo que hoje é comum fazer um sinal de chifres na cabeça quando se pede para alguém focar direito naquilo que está fazendo. E quanto ao Brasil? O destino tupiniquim está envolto em uma série de mistérios. Reza a lenda que um agente de turismo corrupto convenceu os sem-teto-do-frio de que o Brasil seria a terra do futuro, prometendo que em breve o país desenvolveria uma economia fortíssima capaz de construir geradores potentes que fariam nevar em cada canto da nação tropical (só deu certo da serra catarinense). Somado a isso o fato de que o Brasil estava confirmado como a próxima sede dos jogos de inverno, os ursos-polares deliberaram entre si, chegando à conclusão de que valia arriscar o passaporte. Se a Bahia não fosso tudo aquilo, ao menos dava para treinar patinação no lago da Pampulha e representar o novo lar com brio na competição que se avizinhava. As raposas gostaram tanto da ideia que formaram uma excursão só delas para construir uma nova cidade no planalto tupiniquim. Batizada de Brasília, o local hoje abriga um zoológico gigantesco de espécies raras de homo-sapiens, todos vestidos de terno e gravata, cujo hábito mais impressionante é o de falar, falar e falar e não se chegar à conclusão alguma. Pior destino tiveram os pingüins imperadores da Antártida. Depois do desgelo do seu território, foram sumariamente escravizados por uma companhia de cerveja, sendo só dois deles aproveitados para servir de propaganda no rótulo da bebida. O que ocorreu com o restante é demasiadamente triste, um verdadeiro holocausto pinguinal, sob as ordens de um general maluco que não via outra solução para o planeta a não ser preservar a pureza genética dos gafanhotos das Ilhas Maurício. Enfim, quando a comitiva de anões da ONU – Organização dos Nanicos Ultramarinos – aportou na baía de Guanabara, a coisa toda já tinha ido toda por água abaixo... só restando o Redentor em cima do monte, cujos braços abertos serviam de bóia salva-vidas para os poucos micos ainda vivos...   

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?



Muito se especulou, mas nada de concreto foi registrado nos anais do pequeno vilarejo de Vâmo-Aí a respeito do misterioso desaparecimento de Guilhermino-Toca. O que se sabe ao certo é que o sumiço durou somente um dia. Vinte e quatro horas de silêncio absoluto de um dos mais respeitáveis filhos-de-Deus que a humanidade já tivera notícia. E sobre isso não há documento na face da terra capaz de provar o contrário. De Bangladesh ao Macapá, de Mossoró a Chernobil, não havia quem não gostasse de Guilhermino-Toca. Se os motivos de tal evaporação sumária ainda permanecem escusos, claro como o raio de sol era o conjunto das qualidades morais pertencentes a Guilhermino-Toca. Embora nutrisse certo rancor a alguns poucos invejosos – um pote de mel aberto sempre atrai vespas interesseiras -, nunca se soube de alguém que formalmente desafiasse o rapaz para qualquer tipo de duelo que fosse. Mesmo assim, sumiu! Escafedeu-se! Tomou banho com pó de pirilampo e... PUF! O sinal de que algo estava errado acendeu logo cedo. Quando Guilhermino-Toca não compareceu à padaria em que costumava tomar café da manhã religiosamente no horário das seis horas, Dona Eustáquia-dos-Odores imediatamente sentiu falta daquele ‘bom dia, cara colega!’ que só Guilhermino-Toca ousava lhe presentear. Essa, aliás, era uma das mais benquistas benesses do rapaz: não conseguia evitar ninguém. Ainda que amplamente divulgado, o poder apocalíptico do bafo podre da senhora dos-Odores estava longe de representar barreira intransponível à cortesia de Guilhermino-Toca, levando-o a arriscar corajosamente a própria vida ao se colocar no alvo de mira de uma iminente rajada de alho vaporizado da velha gorda. O que dizer então da decepção do cego Vadislau-Aonde quando soube que o braço que o conduzia ao outro lado da rua não era o de Guilhermino-Toca? Justo este pobre ceguinho cujo principal motivo de ânimo na vida era ser guiado pelo nosso herói! Para não ser pego desprevenido e correr o risco de perder a carona, Vadislau-Aonde calculava exatamente o tempo de sair de casa em função do itinerário do nosso herói, que há muito havia decorado, na sagrada esperança de alcançá-lo no instante preciso da travessia. Mal sabia que tal esforço era desnecessário. Guilhermino-Toca era tão prestativo e afeito aos serviços humanitários que era bem capaz dele próprio alterar a sua rotina para esperar o pobre Vadislau-Aonde naquela famosa esquina, oferecendo sem qualquer demonstração de suplício aquele bendito e idolatrado braço direito. Triste mesmo foi presenciar o trote capenga da oitava seção de maratonistas do clube de veraneio de Vâmo-Aí, cujo principal atleta era, claro, Guilhermino-Toca. Ninguém no pequeno vilarejo tinha o físico tão privilegiado quanto o de Guilhermino-Toca. Por onde quer que desfilasse o seu conjunto de músculos torneados, homens e mulheres paravam o que estavam fazendo para admirar com júbilo as proporções perfeitas daquele Adônis, ao mesmo tempo em que apontavam o exemplo de saúde aos seus pequenos filhos e apadrinhados. Não foram poucas as medalhas olímpicas que Guilhermino-Toca trouxe para serem beijadas pelos seus orgulhosos conterrâneos. Houve até quem especulasse que a seleção americana de atletismo estava interessada em investir caminhões de dólares para levar Guilhermino-Toca à América. Lágrimas escorreram pelos olhos dos habitantes de Vâmo-Aí quando em resposta Guilhermino-Toca cantou de cor e à capela o hino do vilarejo, fazendo questão de colocar a mão direita no coração ao mesmo tempo em que lançava um olhar redentor aos céus. Depois disso, não se ouviu um único boato de que o nosso herói quisesse debandar para fora das fronteiras do solo sagrado que o viu nascer. Após o episódio, um busto de bronze de Guilhermino-Toca foi erguido ao lado do coreto da praça principal, virando imediatamente ponto de peregrinação dos mais jovens aos mais velhos, além do seu cocuruto metálico inaugurar um excelente posto de descanso temporário para a população de pombas migratórias. A verdade é que Vâmo-Aí não sabia para onde ir. Como um trem que perde a sua locomotiva, Guilhermino-Toca com seu chá de sumiço deixava à deriva todo um contingente de milhares de almas. É bem verdade que exageramos. Vâmo-Aí não chegava a somar trezentos habitantes, e isso incluindo os vira-latas, que não aceitavam de forma alguma ficar de fora do censo. Mas o eufemismo é plenamente justificável, pois a crise gerada pelo nosso personagem ausente ganhava cada vez mais contornos hiperbólicos. A população começava a se agitar. Alguma coisa deveria ser feita antes que houvesse uma nova queda da Bastilha! O delegado tomou as rédeas. A delegacia de polícia resolveu organizar uma frente de buscas atrás de Guilhermino-Toca. Os jornais gostaram do exemplo e começaram a imprimir edições extras em caráter de urgência, estampando a cara de Guilhermino-Toca na página principal. Sob a foto lia-se: ‘O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?’. As recompensas eram altíssimas. Mas nada de Guilhermino-Toca. Enfim. E agora? Não se desespere aí desse lado, caro leitor! A sua posição é muito mais confortável que a minha! Como criador dessa invenção que nunca se deu em tempo e lugar algum, começo também a querer sumir com a presente dificuldade de se encontrar um fim a tudo isso. A fábula começa a ficar longa e é preciso encontrar, senão Guilhermino-Toca, um desfecho no mínimo aceitável. E já que detenho esse miolo criativo que dá substância a toda essa sopa de enlevos, faço uso desse poder para retornar no tempo e encontrar Guilhermino-Toca bem debaixo do seu cobertor, o único lugar que resolveram não vasculhar. No aconchego da sua preguiça, entendeu que recompensa maior não há para aquele que resolve sumir espontaneamente do altar coletivo. E lá ficou. Orgulhoso como nunca. Para nunca mais sair. Fim! Ufa...

domingo, 10 de junho de 2012

Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas...



Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas. No início por distração, depois por hábito. Desde a sua tenra infância, Alcebíades-Sombra gostava de arrastar um guarda-chuva atrás de si. Ainda que o sol estivesse pleno no firmamento, Alcebíades-Sombra não economizava escusas que justificassem sua extrema necessidade de sair de casa junto ao seu fiel companheiro de luta. Como um Dom Quixote das intempéries chuvosas, o menino não ousava pôr-se em movimento sem a companhia do seu Sancho Pança de cabo e lona. Se o prólogo anunciava aventuras inéditas, o epílogo redigia sempre as mesmas linhas: o retorno do garoto, sempre sozinho, sem o seu guarda-chuva a tiracolo. Quando chovia, as coisas não se alteravam. Talvez imaginássemos que a chuva pudesse tornar tudo mais fácil para Alcebíades-Sombra. Uma vez útil, o objeto não sairia da mão do seu dono, evitando lapsos de distração que desembocassem na perda sumária do dito cujo. Ledo engano. Em dias de tormenta, era comum ver Alcebíades Sombra regressar ensopado ao local de onde partira. Sua mãe o advertia para nunca mais incorrer em tal tipo de esquecimento, recorrendo muitas vezes a castigos exemplares. Mas parece que o menino nunca se emendava. Na adolescência, enquanto as espinhas apareciam, os guarda-chuvas continuavam a sumir. Vejamos agora como se comportava Alcebíades-Sombra na sua idade madura. Fase em que os guarda-chuvas deixam de ser extravagantes e animados para ganhar contornos sóbrios e bem comportados. Já com barba feita no rosto, onde quer que Alcebíades-Sombra desejasse ir, continuava a levar consigo seu guarda-chuva. Dessa vez preferia modelos clássicos, com acionamento automático da aba, cuja estrutura trançada por arames de alumínio formava desenhos geométricos admiráveis. Mas quem disse que glamour altera caráter? A coisa toda tinha perdido os ares de aventura para ingressar no perigoso terreno das necessidades do hábito. A rotina era sempre a mesma. Saia de casa bem de manhãzinha para cumprir com suas obrigações e mais tarde voltava já desincumbido do seu companheiro de partida. Retornava contente ao seu lar, com a segurança de ter desempenhado um bom papel como cidadão correto que era, mas bastava bater a porta atrás de si para o sorriso lhe escapar. O semblante de Alcebíades-Sombra de repente tornava-se lívido, de um tom sinistro tal qual uma máscara mortuária dos filmes de ficção. Percebia, então, que algo estava errado, que voltara mais leve do que quando partiu. Uma triste sensação de ausência acompanhava o instante em que Alcebíades-Sombra tomava consciência do seu ato criminoso. Repassava mentalmente todos os locais em que estivera com a esperança de no dia seguinte recuperar o que havia perdido. Sempre em vão. Por algum mistério ainda não revelado, nunca se encontravam os guarda-chuvas perdidos por Alcebíades-Sombra. As noites eram duras para Alcebíades-Sombra. Raramente pegava no sono, e quando conseguia fechar os olhos, terríveis pesadelos o acometiam. O enredo nunca mudava: um guarda-chuva gigante fechava sobre sua cabeça, sufocando-o até a morte. Mas o luto não durava muito. Alcebíades-Sombra encontrava razão para velar sua dor somente durante o período em que a lua permanecia protagonista do céu. Quando amanhecia, ainda um pouco cambaleante da ressaca moral da véspera, deparava-se com um novo guarda-chuva recostado à porta de saída. O olhar de Alcebíades-Sombra brilhava como se houvesse atravessado o vidro da maternidade para ver seu filho encontrar o mundo pela primeira vez. Como não tinha filhos, o novo guarda-chuva fazia o papel de restaurador dos laços afetivos, antes combalidos. Mas a alegria não durava. O final do dia era sempre triste para Alcebíades-Sombra. Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas e isso o fazia sofrer. Algumas táticas foram testadas para tentar brecar o ciclo de tragédias anunciadas. Primeiramente, Alcebíades-Sombra detectou o seu vício. A despeito da vergonha pública onde a zombaria alheia pudesse vir a significar novas feridas, Alcebíades-Sombra foi forte o suficiente para encarar de frente o seu problema. Procurou um médico especialista em esquecimentos. O doutor receitou alguns procedimentos que Alcebíades-Sombra deveria seguir com afinco. E assim foi feito. Tirou fotos do guarda-chuva atual, e como continuava a perdê-los, formou um mural enorme na parede da sala que rapidamente ganhou ares de altar. Depois começou a batizar o guarda-chuva com nome próprio, e como continuava a perdê-los, fazia orações diárias aos seus entes queridos que já não mais estavam junto de seu pai amado. Enfim, todos os recursos foram esgotados e nada funcionou. Até que em certo dia, Alcebíades-Sombra teve um mal súbito e morreu. No seu enterro, São Pedro regou a cerimônia com uma chuva de lavar a alma. Alcebíades-Sombra, lá onde estava, conseguia ver uma infinidade de amigos e parentes que já não lembrava mais que tinha. Mas isso não foi o que mais o emocionou. Do seu ângulo de visão, enxergava claramente um batalhão de rodelas pretas, todas abertas e firmes, um verdadeiro exército de guarda-chuvas atentos à sua lembrança. Ufa! Até que enfim Alcebíades-Sombra pôde reencontrar aquilo que durante toda sua vida andou perdendo. E foi-se embora feliz.