A máquina Golifius tinha acabado de chegar à cidade. Todos
os habitantes, dos mais humildes aos mais nobres, foram recepcioná-la. A
pequena banda de sopros da prefeitura ensaiou meses a fio para não fazer feio
no grande evento. As meninas, acompanhadas de seus pais, trajavam vestidos de
cetim de cores claras. Por cima das cabecinhas, um laço enorme de rendas. Os
ternos dos cavalheiros foram desentocados dos guarda-roupas. Gravatas e
cartolas davam a importância da ocasião. Até mesmo as senhoras, normalmente
recatadas e entregues as labutas do lar, saíram às ruas para ver a chegada da
máquina Golifius. Os meninos resolveram não participar, preferindo dar
continuidade à peleja no campinho de terra batida Já a comunidade canina estava
representada por dois vira-latas sem nome, que entre uma coçada e outra no
lombo sarnento, apontavam os focinhos na direção do espetáculo. À tarde de sol
imprimia ao desfile uma luz âmbar, tornando tudo ainda mais fantástico. O vento
entrava num compasso de adágio majestoso e fazia esvoaçar tudo o que tocava. A
cena tinha um aspecto curioso de filme antigo, desses que a gente volta à fita
para rever um cenário que sabemos não existir mais. À frente do grande equipamento
estava Radamés-Nhócoli, o grande e respeitado empresário da máquina Golifius.
Quando finalmente o cortejo estacionou na praça principal, Radamés-Nhócoli
subiu num pequeno palanque e começou o seu discurso. Falava bem, com uma voz
clara de quem não mente. Explicava todas as características e funcionamento da
sua obra, detalhando cada peça e o seu papel dentro do gigantesco mecanismo ao
qual fazia parte. Quando terminou, os espectadores já estavam convencidos da
importância magistral da máquina Golifius. Difícil recuar no tempo e imaginar
como seria a vida sem essa espetacular obra da engenharia científica. O público
ouvia calado, absorto em pensamentos sublimes. Até a coceira dos vira-latas deu
um trégua. Era a própria confiança que enchia o peito dos habitantes da pequena
cidade. Quem não gostaria de abandonar o árduo ofício na roça para trabalhar no
funcionamento da majestosa e espetacular máquina Golifius? Fora a fama que
certamente recairia no colo do funcionário contratado – a foto na primeira
página do jornal do dia seguinte estava certamente garantida -, havia a questão
de experimentar de uma vez por todas a sensação de pertencer ao mundo moderno.
Era de conhecimento geral que a máquina Golifius representava o que de mais
novo a indústria moderna poderia construir. Só uma rápida olhada nos seus
mecanismos expostos já era suficiente parar provar tal teoria. Curiosamente,
ninguém pensava ou falava no salário, embora soubessem, por alguma estranha
convicção, que o montante compensaria o suor da empreitada. A bem da verdade,
não era difícil encontrar quem se dispusesse a fazer tudo de graça, sem ganhar
nem um tostão. O mais importante era vestir o uniforme de empregado da máquina
Golifius, custe o que custasse. E então, chegou o grande momento! A tensão
estava no ar. Dali a instantes, saberíamos quem seria o contratado para o
emprego. Havia somente uma vaga para o trabalho, mas isso não minava as
esperanças dos presentes, só aumentava a ansiedade. Senhas foram distribuídas à
multidão. Um a um, cada um a seu tempo, foi chamado para uma entrevista
particular. Uma banca especializada iria dar curso á seleção dentro de uma
pequena tenda armada ao lado do coreto. Algumas pombas pousaram no teto da
armação e lá de cima soltavam aquele som gutural, típico da espécie. Empresários
dos mais variados setores formavam essa junta de técnicos altamente
especializados no recrutamento das qualidades necessárias para dar
funcionamento a uma máquina do porte da Golifius. Era preciso analisar cada
candidato e de forma bastante minuciosa. Número 45! O silêncio era quebrado por
um senhor barrigudo e de bigodes que davam a volta no quarteirão, provavelmente
um representante do alto escalão das empresas Golifius. O candidato, suando e
pálido como uma folha em branco, se dirigia a passos trôpegos até sumir pela
entrada do gabinete improvisado. Para os que lá fora permaneciam, esperando sua
vez de entrar, a única coisa que conseguiam ouvir quando forçavam a escuta era
a sinfonia das aves, que lá de cima se postavam como arautos da crise de Tebas.
Ao final do processo, depois de cumprir com todas as entrevistas, o resultado
foi divulgado. Fulano de Tal havia conseguido a vaga! Sua família quase
desmaiou de emoção ao ouvir o anúncio de seu nome. De fato, no dia seguinte,
Fulano de Tal estampava sua foto na primeira página do jornal. O restante dos
habitantes voltou a empunhar a enxada, instrumento nada sofisticado, mas
altamente eficiente na localidade da roça. Fulano de Tal ganhou seu uniforme e
sumiu da cidade, levando sua família. Muito tempo depois, soubemos que Fulano
de Tal tinha enriquecido muito. Prosperou como ninguém. Quando perguntavam seu
nome, dizia com orgulho: ‘Sou Fulano de Tal, empregado da máquina Golifius’.
sexta-feira, 15 de junho de 2012
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Os palhaços tristes da história!
Quando os soldados da força policial O*O levaram para a
forca a dupla de palhaços engraçados, o general Hilário-Rabuja comia
tranquilamente um sanduíche de mortadela no sofá da sua casa. Buurp, foi o som
do seu arroto. A regra que vigorava era clara: quem risse ou fizesse rir,
virava presunto. Nessa sessão de frios, triste congestão tiveram as hienas da
África, obrigadas a engolir sua ironia e migrar para um campo de falta de
concentração na ilha de Cuba, onde mais tarde morreriam de rir do ditador bigodudo
que fumava há séculos o mesmo charuto de folha de uva. Bingo! O comunismo
estava por trás de tudo! Como sabemos? Descoberta fartamente documentada pelo
agente Ethan Hunt que adentrou as fronteiras do politburo russo para flagrar
Stalin seriíssimo, ensaiando secretamente a coreografia do ‘ai se eu te pego
aiai’. Palhaçadas? Só para desertores do movimento. Em terra de
revolucionários, quem move os lábios para cima sai da fila e vira traidor da
pátria. E o povo? Quem tem por pai bufões barbudos, sisudos e tristes, jamais
deve rir! Desrespeito mortal! A revolução que faria o proletariado subir ao
poder não permitia nenhuma piada. O primeiro capítulo do manifesto dizia de
forma peremptória que era dever de todo camarada de bem fechar a cara, armar-se
com sua foice e martelo e ceifar todo e qualquer soluço involuntário que
brotasse bem lá no âmago da região abdominal. Onde? Cientistas políticos da
China de Mao investigaram meses a fio a região íntima responsável por dar
origem ao impulso pecaminoso da ironia. Após passar pelo território dos gemidos
orgiásticos do ponto G – sem gozar! -, chegou-se finalmente a conclusão de que
o riso eclodia em alguma localidade diafragmal entre o umbigo e o apêndice
cartilaginoso das costelas, mais conhecido no linguajar medicinal como processo
xifóide. Bingo²! Era lá mesmo que o veneno se aninhava, dentro de uma
concavidade gástrica, oca e escura, longe das sinapses iluminadas do intelecto
pragmático! Triste confusão. Alguns espiões da KGB confundiram o diagnóstico com
dor de barriga, metralhando uma série de inocentes que corriam desesperados em
busca de um banheiro público na Praça Vermelha! Os laxantes foram recolhidos
das farmácias em caráter de urgência até que todo o equívoco fosse esclarecido.
Nenhum camarada queria correr o risco de ser pego pelo rabo e entrar para os
anais da traição como alguém que só fez merda na história revolucionária.
Burrrrp, nova interferência vaporosa de nosso general Hilário-Rabuja. Ai de
mim! Tragédia sem graça! E por falar em Aristóteles, o companheiro Karl, Karl
Marx, tratou logo de confiscar o tratado que o filósofo escrevera sobre o
gênero cômico, fazendo sumir, inclusive, a máscara sorridente que fazia par com
sua gêmea triste, ambas formando até então o símbolo milenar do teatro. Nada de
emoções baixas, agora só a catarse vigorava! Aristófanes e Moliére entraram
para a lista de procurados da justiça, cujas cabeças vivas valiam algo em torno
de um pacote de Café Pilão para socializar com a família. As recompensas eram
polpudas e sedutoras, justamente para se evitar o contágio com o escárnio
capitalista. Toque de recolher geral! Rapidamente todos os sacos-de-risada
foram confiscados das lojas de brinquedo, deixando milhares de crianças
chupando o dedo. E por falar nessa fase etária nefanda, comumente associada à
troça e zombaria, foi designada a cada família uma máscara de ferro para ser
acoplada ao rosto juvenil, de modo a evitar qualquer sinal físico de achincalhe
sardônico que viesse a atrapalhar a árdua batalha do partidão. Mais tarde
toda essa classe infantilóide iria amadurecer, agradecendo aos seus parentes
obtusos a chance de ocupar cargos burocráticos no funcionalismo público da
máquina estatal. Quem não gostaria de virar um funcionário público e carimbar
despachos do grande pai até o fim dos seus dias? Foi a partir dessa experiência
incrível que Kafka homenageou o progresso humano ao psicografar sua obra-prima
‘O Processo’. Buuuurp. Enquanto o general Hilário-Rabuja assistia pela
televisão a prova inconteste de obediência dos norte-coreanos ao seu líder
recém morto, mestre Lin-Kiu-Ping-Pong, aqui, nos trópicos do ocidente, o
exército da chanchada-careta decretava a lei do bullying mental, convocando a
todos para marchar na Paulista em homenagem ao enorme progresso do cabresto do
intelecto. O povo unido, jamais será vencido!
quarta-feira, 13 de junho de 2012
O sacerdote picareta...
O andarilho a que todos chamavam de o novo Buda resolveu
quebrar o silêncio e se dirigir ao povo que o seguia havia séculos. Até então
nunca tinha aberto a boca para dizer nada. Ninguém conhecia a sua voz. Subiu
numa pedra para que ficasse num plano mais alto e disse as seguintes palavras a
sua multidão de fiéis apaixonados: ‘Parem de me seguir! Não faço milagres! Tenham
a coragem de conviver com suas próprias misérias e me deixem em paz com as
minhas’. E se calou para nunca mais falar de novo. Depois do breve e
surpreendente pronunciamento, o andarilho caiu numa deslumbrante gargalhada que
o fez rolar ao chão. Divertia-se como nunca. Foi tomado como louco. Todos o
abandonaram. Depois de não sei quanto tempo experimentava novamente a sensação
de ficar sozinho. ‘Que benção’, pensou ele! Um profeta verdadeiro não deve rir.
A vida é por demais séria e perigosa para se abrir espaço a interlúdios de
loucura. Nesse instante percebeu o quanto tinha se tornado um picareta. E se
salvou.
terça-feira, 12 de junho de 2012
Os Anões Ultramarinos da ONU no Brasil...
Quando a comitiva de anões da ONU – Organização dos Nanicos
Ultramarinos – aportou na baía de Guanabara, já era tarde demais. Os ursos
polares já tinham dominado as dependências do Piscinão de Ramos e almoçado
todos os funkeiros que por lá rebolavam. Na falta de focas albinas no cardápio,
foram de tchutchucas e tchuchucos. Embora um pouco salgada demais, a carne
mostrava-se tenra e macia. O único inconveniente, segundo os próprios
consumidores, estava na fase da digestão, constantemente interrompida por um desconforto
abdominal que chamavam de pancadão-do-tigrão. O aquecimento global havia
chegado ao seu limite máximo, de forma que já não era mais possível encontrar
em parte alguma nem mesmo um par de pedrinhas de gelo pra mergulhar na
caipirinha. O êxodo polar se deu de maneira bastante comovente, com toda a
população restante de ursos, focas e raposas cantando em coro o ‘adeus amor eu
vou partir’ numa jangada próxima a costa do Canadá. O evento foi transmitido ao
vivo pela Globo, com trilha sonora da Celine Dion. A verdade é que a
repercussão global foi tamanha, criando-se inclusive um programa humanitário
batizado de ‘Foca Esperança’ para arrecadar fundos, que alguns
náufragos-da-geladeira acabaram sendo adotados por uma comunidade de fazendeiros
do Texas, o que exigiu a imediata tosa dos casacões de pele. Mais tarde se
soube que o comércio de lã para o fabrico de cachecóis havia ultrapassado a
famosa indústria agropecuária do local, tornando o Texas o maior exportador de
vestimentas para inverno do mundo inteiro. Quem nunca viu o outdoor mostrando o
Bush tremendo de frio, com a cabeça enfiada num baita gorro de pom-pom rosa de
pelo de urso? Os órfãos do ártico que permaneceram no Texas acabaram
constituindo família e se acostumando com a nudez, inaugurando dali a pouco
tempo a primeira praia nudista para ex-ursos polares do planeta. Grande parte
do contingente de focas preferiu migrar para a Finlândia. Os vikings prometeram
receber as novas inquilinas com um belo par de chifres na cabeça. Quem não
gostou nada disso foram os alces canadenses, que tiveram de permanecer onde
sempre estiveram, ruminando a mesma grama verde de sempre. A relação entre os
Vikings e as focas deu tão certo que hoje é comum fazer um sinal de chifres na
cabeça quando se pede para alguém focar direito naquilo que está fazendo. E
quanto ao Brasil? O destino tupiniquim está envolto em uma série de mistérios.
Reza a lenda que um agente de turismo corrupto convenceu os sem-teto-do-frio de
que o Brasil seria a terra do futuro, prometendo que em breve o país
desenvolveria uma economia fortíssima capaz de construir geradores potentes que
fariam nevar em cada canto da nação tropical (só deu certo da serra
catarinense). Somado a isso o fato de que o Brasil estava confirmado como a
próxima sede dos jogos de inverno, os ursos-polares deliberaram entre si,
chegando à conclusão de que valia arriscar o passaporte. Se a Bahia não fosso
tudo aquilo, ao menos dava para treinar patinação no lago da Pampulha e
representar o novo lar com brio na competição que se avizinhava. As raposas
gostaram tanto da ideia que formaram uma excursão só delas para construir uma
nova cidade no planalto tupiniquim. Batizada de Brasília, o local hoje abriga
um zoológico gigantesco de espécies raras de homo-sapiens, todos vestidos de
terno e gravata, cujo hábito mais impressionante é o de falar, falar e falar e
não se chegar à conclusão alguma. Pior destino tiveram os pingüins imperadores
da Antártida. Depois do desgelo do seu território, foram sumariamente
escravizados por uma companhia de cerveja, sendo só dois deles aproveitados
para servir de propaganda no rótulo da bebida. O que ocorreu com o restante é
demasiadamente triste, um verdadeiro holocausto pinguinal, sob as ordens de um
general maluco que não via outra solução para o planeta a não ser preservar a
pureza genética dos gafanhotos das Ilhas Maurício. Enfim, quando a comitiva de
anões da ONU – Organização dos Nanicos Ultramarinos – aportou na baía de
Guanabara, a coisa toda já tinha ido toda por água abaixo... só restando o
Redentor em cima do monte, cujos braços abertos serviam de bóia salva-vidas
para os poucos micos ainda vivos...
segunda-feira, 11 de junho de 2012
O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?
Muito se especulou, mas nada de concreto foi registrado nos
anais do pequeno vilarejo de Vâmo-Aí a respeito do misterioso desaparecimento
de Guilhermino-Toca. O que se sabe ao certo é que o sumiço durou somente um
dia. Vinte e quatro horas de silêncio absoluto de um dos mais respeitáveis
filhos-de-Deus que a humanidade já tivera notícia. E sobre isso não há
documento na face da terra capaz de provar o contrário. De Bangladesh ao
Macapá, de Mossoró a Chernobil, não havia quem não gostasse de Guilhermino-Toca.
Se os motivos de tal evaporação sumária ainda permanecem escusos, claro como o
raio de sol era o conjunto das qualidades morais pertencentes a
Guilhermino-Toca. Embora nutrisse certo rancor a alguns poucos invejosos – um
pote de mel aberto sempre atrai vespas interesseiras -, nunca se soube de
alguém que formalmente desafiasse o rapaz para qualquer tipo de duelo que
fosse. Mesmo assim, sumiu! Escafedeu-se! Tomou banho com pó de pirilampo e...
PUF! O sinal de que algo estava errado acendeu logo cedo. Quando
Guilhermino-Toca não compareceu à padaria em que costumava tomar café da manhã
religiosamente no horário das seis horas, Dona Eustáquia-dos-Odores
imediatamente sentiu falta daquele ‘bom dia, cara colega!’ que só Guilhermino-Toca
ousava lhe presentear. Essa, aliás, era uma das mais benquistas benesses do
rapaz: não conseguia evitar ninguém. Ainda que amplamente divulgado, o poder
apocalíptico do bafo podre da senhora dos-Odores estava longe de representar
barreira intransponível à cortesia de Guilhermino-Toca, levando-o a arriscar
corajosamente a própria vida ao se colocar no alvo de mira de uma iminente
rajada de alho vaporizado da velha gorda. O que dizer então da decepção do cego
Vadislau-Aonde quando soube que o braço que o conduzia ao outro lado da rua não
era o de Guilhermino-Toca? Justo este pobre ceguinho cujo principal motivo de
ânimo na vida era ser guiado pelo nosso herói! Para não ser pego desprevenido e
correr o risco de perder a carona, Vadislau-Aonde calculava exatamente o tempo
de sair de casa em função do itinerário do nosso herói, que há muito havia
decorado, na sagrada esperança de alcançá-lo no instante preciso da travessia.
Mal sabia que tal esforço era desnecessário. Guilhermino-Toca era tão
prestativo e afeito aos serviços humanitários que era bem capaz dele próprio
alterar a sua rotina para esperar o pobre Vadislau-Aonde naquela famosa esquina,
oferecendo sem qualquer demonstração de suplício aquele bendito e idolatrado
braço direito. Triste mesmo foi presenciar o trote capenga da oitava seção de
maratonistas do clube de veraneio de Vâmo-Aí, cujo principal atleta era, claro,
Guilhermino-Toca. Ninguém no pequeno vilarejo tinha o físico tão privilegiado
quanto o de Guilhermino-Toca. Por onde quer que desfilasse o seu conjunto de
músculos torneados, homens e mulheres paravam o que estavam fazendo para
admirar com júbilo as proporções perfeitas daquele Adônis, ao mesmo tempo em
que apontavam o exemplo de saúde aos seus pequenos filhos e apadrinhados. Não
foram poucas as medalhas olímpicas que Guilhermino-Toca trouxe para serem
beijadas pelos seus orgulhosos conterrâneos. Houve até quem especulasse que a
seleção americana de atletismo estava interessada em investir caminhões de
dólares para levar Guilhermino-Toca à América. Lágrimas escorreram pelos olhos
dos habitantes de Vâmo-Aí quando em resposta Guilhermino-Toca cantou de cor e à
capela o hino do vilarejo, fazendo questão de colocar a mão direita no coração
ao mesmo tempo em que lançava um olhar redentor aos céus. Depois disso, não se
ouviu um único boato de que o nosso herói quisesse debandar para fora das
fronteiras do solo sagrado que o viu nascer. Após o episódio, um busto de
bronze de Guilhermino-Toca foi erguido ao lado do coreto da praça principal,
virando imediatamente ponto de peregrinação dos mais jovens aos mais velhos,
além do seu cocuruto metálico inaugurar um excelente posto de descanso
temporário para a população de pombas migratórias. A verdade é que Vâmo-Aí não
sabia para onde ir. Como um trem que perde a sua locomotiva, Guilhermino-Toca
com seu chá de sumiço deixava à deriva todo um contingente de milhares de
almas. É bem verdade que exageramos. Vâmo-Aí não chegava a somar trezentos
habitantes, e isso incluindo os vira-latas, que não aceitavam de forma alguma
ficar de fora do censo. Mas o eufemismo é plenamente justificável, pois a crise
gerada pelo nosso personagem ausente ganhava cada vez mais contornos
hiperbólicos. A população começava a se agitar. Alguma coisa deveria ser feita
antes que houvesse uma nova queda da Bastilha! O delegado tomou as rédeas. A
delegacia de polícia resolveu organizar uma frente de buscas atrás de
Guilhermino-Toca. Os jornais gostaram do exemplo e começaram a imprimir edições
extras em caráter de urgência, estampando a cara de Guilhermino-Toca na página
principal. Sob a foto lia-se: ‘O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?’. As
recompensas eram altíssimas. Mas nada de Guilhermino-Toca. Enfim. E agora? Não
se desespere aí desse lado, caro leitor! A sua posição é muito mais confortável
que a minha! Como criador dessa invenção que nunca se deu em tempo e lugar
algum, começo também a querer sumir com a presente dificuldade de se encontrar
um fim a tudo isso. A fábula começa a ficar longa e é preciso encontrar, senão
Guilhermino-Toca, um desfecho no mínimo aceitável. E já que detenho esse miolo
criativo que dá substância a toda essa sopa de enlevos, faço uso desse poder
para retornar no tempo e encontrar Guilhermino-Toca bem debaixo do seu
cobertor, o único lugar que resolveram não vasculhar. No aconchego da sua
preguiça, entendeu que recompensa maior não há para aquele que resolve sumir
espontaneamente do altar coletivo. E lá ficou. Orgulhoso como nunca. Para nunca
mais sair. Fim! Ufa...
domingo, 10 de junho de 2012
Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas...
Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas. No início por
distração, depois por hábito. Desde a sua tenra infância, Alcebíades-Sombra
gostava de arrastar um guarda-chuva atrás de si. Ainda que o sol estivesse
pleno no firmamento, Alcebíades-Sombra não economizava escusas que justificassem sua
extrema necessidade de sair de casa junto ao seu fiel companheiro de luta. Como
um Dom Quixote das intempéries chuvosas, o menino não ousava pôr-se em movimento
sem a companhia do seu Sancho Pança de cabo e lona. Se o prólogo anunciava
aventuras inéditas, o epílogo redigia sempre as mesmas linhas: o retorno do
garoto, sempre sozinho, sem o seu guarda-chuva a tiracolo. Quando chovia, as
coisas não se alteravam. Talvez imaginássemos que a chuva pudesse tornar tudo
mais fácil para Alcebíades-Sombra. Uma vez útil, o objeto não sairia da mão do
seu dono, evitando lapsos de distração que desembocassem na perda sumária do
dito cujo. Ledo engano. Em dias de tormenta, era comum ver Alcebíades Sombra
regressar ensopado ao local de onde partira. Sua mãe o advertia para nunca mais
incorrer em tal tipo de esquecimento, recorrendo muitas vezes a castigos
exemplares. Mas parece que o menino nunca se emendava. Na adolescência,
enquanto as espinhas apareciam, os guarda-chuvas continuavam a sumir. Vejamos
agora como se comportava Alcebíades-Sombra na sua idade madura. Fase em que os
guarda-chuvas deixam de ser extravagantes e animados para ganhar contornos
sóbrios e bem comportados. Já com barba feita no rosto, onde quer que
Alcebíades-Sombra desejasse ir, continuava a levar consigo seu guarda-chuva.
Dessa vez preferia modelos clássicos, com acionamento automático da aba, cuja
estrutura trançada por arames de alumínio formava desenhos geométricos
admiráveis. Mas quem disse que glamour altera caráter? A coisa toda tinha perdido
os ares de aventura para ingressar no perigoso terreno das necessidades do
hábito. A rotina era sempre a mesma. Saia de casa bem de manhãzinha para
cumprir com suas obrigações e mais tarde voltava já desincumbido do seu
companheiro de partida. Retornava contente ao seu lar, com a segurança de ter
desempenhado um bom papel como cidadão correto que era, mas bastava bater a
porta atrás de si para o sorriso lhe escapar. O semblante de Alcebíades-Sombra
de repente tornava-se lívido, de um tom sinistro tal qual uma máscara mortuária
dos filmes de ficção. Percebia, então, que algo estava errado, que voltara mais
leve do que quando partiu. Uma triste sensação de ausência acompanhava o
instante em que Alcebíades-Sombra tomava consciência do seu ato criminoso.
Repassava mentalmente todos os locais em que estivera com a esperança de no dia
seguinte recuperar o que havia perdido. Sempre em vão. Por algum mistério ainda
não revelado, nunca se encontravam os guarda-chuvas perdidos por Alcebíades-Sombra.
As noites eram duras para Alcebíades-Sombra. Raramente pegava no sono, e quando
conseguia fechar os olhos, terríveis pesadelos o acometiam. O enredo nunca
mudava: um guarda-chuva gigante fechava sobre sua cabeça, sufocando-o até a
morte. Mas o luto não durava muito. Alcebíades-Sombra encontrava razão para
velar sua dor somente durante o período em que a lua permanecia protagonista do
céu. Quando amanhecia, ainda um pouco cambaleante da ressaca moral da véspera, deparava-se
com um novo guarda-chuva recostado à porta de saída. O olhar de
Alcebíades-Sombra brilhava como se houvesse atravessado o vidro da maternidade
para ver seu filho encontrar o mundo pela primeira vez. Como não tinha filhos,
o novo guarda-chuva fazia o papel de restaurador dos laços afetivos, antes
combalidos. Mas a alegria não durava. O final do dia era sempre triste para
Alcebíades-Sombra. Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas e isso o fazia
sofrer. Algumas táticas foram testadas para tentar brecar o ciclo de tragédias
anunciadas. Primeiramente, Alcebíades-Sombra detectou o seu vício. A despeito
da vergonha pública onde a zombaria alheia pudesse vir a significar novas
feridas, Alcebíades-Sombra foi forte o suficiente para encarar de frente o seu
problema. Procurou um médico especialista em esquecimentos. O doutor receitou
alguns procedimentos que Alcebíades-Sombra deveria seguir com afinco. E assim
foi feito. Tirou fotos do guarda-chuva atual, e como continuava a perdê-los,
formou um mural enorme na parede da sala que rapidamente ganhou ares de altar.
Depois começou a batizar o guarda-chuva com nome próprio, e como continuava a
perdê-los, fazia orações diárias aos seus entes queridos que já não mais
estavam junto de seu pai amado. Enfim, todos os recursos foram esgotados e nada
funcionou. Até que em certo dia, Alcebíades-Sombra teve um mal súbito e morreu.
No seu enterro, São Pedro regou a cerimônia com uma chuva de lavar a alma.
Alcebíades-Sombra, lá onde estava, conseguia ver uma infinidade de amigos e
parentes que já não lembrava mais que tinha. Mas isso não foi o que mais o
emocionou. Do seu ângulo de visão, enxergava claramente um batalhão de rodelas
pretas, todas abertas e firmes, um verdadeiro exército de guarda-chuvas atentos
à sua lembrança. Ufa! Até que enfim Alcebíades-Sombra pôde reencontrar aquilo
que durante toda sua vida andou perdendo. E foi-se embora feliz.
sábado, 9 de junho de 2012
Quando Pirituba recebe a rainha...
Lancei um olhar através da janela e vi lá fora uma massa
branca dominando a paisagem. Fog em Pirituba? Não sei. Não moro em Pirituba.
Nem sei onde fica. Mas cá onde estou, vizinho de Pirituba e a milhas do Big
Ben, fog se chama neblina. Era neblina. Mas lembrou-me a fog do além mar.
Resolvi ligar para a rainha. Fazia tempo que não batia um papo com a realeza.
Não pude comparecer ao jubileu dos 60 anos de reinado da Eliza. Compromissos
tropicais me prenderam abaixo do equador. Essa era uma oportunidade de me
desculpar e perguntar como andavam as coisas no castelo de Buckingham. A última
vez que lá estive a grama do jardim estava alta demais, tão alta que
dificultava as nossas partidas de cricket. Por isso que nunca levei a sério as
gozações do jovem Will em razão das lavadas que tomei. Só consigo colocar meu
time em campo com a grama rala. Mato alto é bom para a caça a raposa. Lembro-me
perfeitamente do Watson, o beagle mais talentoso do mundo para esse tipo de
esporte. Havia disputas homéricas para ver quem ganhava o direito de incluir o
velho Watson na matilha. Quem contasse com o Watson na equipe já saia na
frente. O faro do bicho surpreendia a todos. Até o Duque da Cornualha, que
estampava um narigão de peixe-boi, se rendia ao talento insuperável do focinho
do velho Watson. Por onde andará agora o velho Watson? Na sua tenra infância
canina, quando ainda nem sonhava em ganhar o título de Dog-of-Wales, dormitava
tranquilamente aos pés da Rainha-Mãe. Oh, Mother-Queen! Que Deus a tenha.
Quantas e quantas vezes não rodei o gramophone para ninar a Rainha-Mãe na sua
alcova? Sua ópera predileta era a Norma de Bellini. Até hoje quando ouço a
Maria Callas interpretando a casta diva me recordo do ronco suave da
Rainha-Mãe. Que Deus a tenha. Que Deus os tenha, melhor dizendo. A julgar pelo
tempo que já transcorreu, Watson já deve estar novamente fungando a sola do pé
da Rainha-Mãe. Chulé de raposa velha, era a piada que fazíamos. Humor inglês
pode. Humor inglês não é que nem o nosso, politicamente-correto. Humor inglês é
polite, só polite. Se não entende inglês, caro leitor, apanhe um dicionário.
The book is on the table. God save the Queen! Alô? Your highness? Is that you?
Não era. Era o mordomo. A rainha estava fazendo sua toalete. Rainha não vai ao
banheiro. Rainha faz a sua toalete. Aguardei na linha durante uma breve
eternidade que não sei exatamente precisar o quanto durou. Enquanto segurava o
gancho do telefone, a paisagem lá fora se tornava surpreendentemente cada vez
mais britânica. Pirituba virou Londres? Não sei, nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Mas os meus ouvidos não me deixavam enganar. O barulho da buzina
era inconfundível. E vinha lá de fora. Alguma embarcação acenava sua passagem
por debaixo da london’s bridge. A mesma ponte que havia queimado por completo
no grande incêndio de 1666. Deu uma vontade louca de prevenir a rainha sobre o perigo do
uso freqüente da lareira no quarto de dormir. É hábito da Eliza acender o fogo
antes de pegar no sono. O ruído das lenhas estalando é como o arauto de Morpheus,
um verdadeiro bálsamo para os seus sonhos. Como sei disso? Elementar meu caro
Watson (in memoriam). Sei disso porque era eu mesmo quem se prontificava a
adentrar nos aposentos da realeza para animar as brasas. Sentia-me o servo mais
sortudo do mundo. Nem a guarda real tinha a oportunidade de ver a rainha de
camisola. Camisola e coroa. Sim, porque Eliza nunca abria mão da coroa. Não era
só no trono. Quer dizer, até no trono a coroa era adereço obrigatório. Imagine
Eliza fazendo sua toalete de coroa! Ah quantas saudades da minha grande e
querida rainha! Hello? Queen
my dear? Is that you? Não. Não era. Era o mordomo pedindo-me a little
more paciência. A your highness estava tendo um pequeno inconveniente com o
desjejum. Parece que a ameixa negra da Guatemala, uma das iguarias obrigatórias
em Buckingham, havia passado da data de validade. Agora cabia ao trono real
despachar a notícia do acontecido. Não me importava em esperar. Continuava com
o gancho do telefone na mão, ansioso e rígido como uma estátua. Quando se trata
de esperar pela rainha, tudo vale à pena. Até virar estátua de cera no museu da
Madame Tussauds. E foi assim, meio encerado e com o gancho na mão, que ouvi a
trupe de atores cantando logo abaixo da minha janela. Era a companhia de
Shakespeare que se dirigia ao The Globe para a estreia de Hamlet! Pirituba
virou a Dinamarca? Hamlet em Pirituba? Não sei. Nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Quiçá Hamlet! Mas eu não estava sonhando, não! Haveria em breve
um ‘Ser ou não ser eis a questão’. Deu uma vontade louca de convidar a rainha
para assistir ao espetáculo. Pensando bem, talvez não fosse conveniente. Como a
Queen iria receber a cena dos coveiros? Quando se chega à determinada idade é
melhor evitar o uso das ironias. Pode ofender. Ou pior, insinuar que em breve
tudo virará pó, até a constituição firme e sólida da realeza. E isso seria
inadmissível. Imagine a rainha voltando como fantasma no ato seguinte? Segundo
o enredo, Charles teria de matar o tio. Mas sabe-se lá se há um tio na sucessão
da coroa! A coisa enrolaria de tal forma que correria o risco de virar trama de
Nelson Rodrigues. Longe de mim acusar a realeza de bonitinha, mas ordinária! Eu
iria para o calabouço bater um papo com a Mary Stuart! Hello? Your highness?
Não era. Era o mordomo. Teria de esperar mais um tempinho. Esperei. Ainda
espero. Para falar com a rainha espero até virar uma caveira carcomida por
vermes...
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