domingo, 15 de fevereiro de 2015

A paradinha da bateria evoluiu de síncopa para uma semibreve, mas do tipo de semibreve longuíssima. A mulata, ainda assim, sustentou o rebolado por alguns eternos silenciosos segundos, e depois congelou. Todo o resto congelou também - baianas, mestres-sala e portas-bandeira, alegorias, plateia e foliões dentro e fora da avenida. E congelados permaneceram até que a neve começara a cair. E feito doces polvilhados por açúcar, cada estátua foi crescendo em uma camada de branco pelo cocuruto e até que só o nariz sobrasse para fora, e depois nem mais o nariz, talvez somente uma única pena de pavão remanescente da última fantasia do destaque que pairava altíssimo no derradeiro carro alegórico. Tudo coberto por um cobertor gigantesco de neve, abafado por uma outra melodia, dessa vez uma melodia branca e carregada de notas longas, nada percussionadas. Passaram-se mil anos, e as escavações descobriram ali os vestígios de uma antiga civilização, e ao que tudo indica bastante primitiva, e cujos habitantes, mumificados, comunicavam-se praticamente pelados, de posse de tinturas no corpo, e de um estranho sorriso paralisado na face...
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Obituários exemplares: # O fim da foliona Betina Albuquerque

Após incontáveis acareações reconstituições e encenações in loco nunca se conseguiu chegar à conclusão de quem ao certo foi o autor do fatídico pisão no rabo de pavão da foliona Betina Albuquerque o que se provou sem que houvesse qualquer fumaça de dúvida é que com o tal derradeiro pisão a foliona Betina Albuquerque fora parar ao chão junto com o seu rabo de pavão e que de lá do chão não levantaram-se nunca mais pisoteados que foram pela ala das crianças e logo após atropelados pelo carro abre-alas que sem se dar conta de Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão estatelados ao cimento da avenida continuou seu trajeto rumo à dispersão mas não sem antes prensá-los ao chão feito massa de pão deixando o corpo de Betina Albuquerque e o seu rabo de pavão sovados ambos aos sabores dos rodopios das baianas que vindas na sequência também fizeram a sua parte ao chutar a foliona Betina Albuquerque que a essa altura já sentia os dentes lhe escaparem da boca o que de fato se confirmou quando o casal de mestre-sala e porta-bandeira lha desferiu uma baita duma bicuda no maxilar como consequência do movimento de um desses passos nobres ao qual a foliona Betina Albuquerque junto ao seu rabo de pavão só poderiam render admirações uma vez que a especialidade de ambos era sambar e não bailar ainda que agora nem isso mais era viável haja vista que o rabo de pavão de tão amarrotado estava mais para penugem de frango de macumba e ela pobrezinha toda ela banguela e à imagem e semelhança de uma santa surrada na periferia e se ainda não era completamente santa porque ainda não era morta para ser beatificada pelo papa o fato é que cumpriu a primeira etapa do processo morrendo já quando a velha guarda que acreditava-se iria toda ela empacotar antes da foliona Betina Albuquerque e do seu rabo de pavão serem pisados proferiu bengaladas no crânio de Betina Albuquerque que já sem vida e com os miolos espalhados pela avenida por sorte do destino fora recolhida por um passista que munido da perspicácia dos malandros alocou o cadáver atado ao rabo de pavão na última alegoria da escola que era justamente e por sorte do destino uma alegoria que trazia um caixão puxado por tantos outros foliões fantasiados de coveiros e assim a foliona Betina Albuquerque encerrou a sua participação na história do samba ainda que essa história prometa capítulos futuros uma vez que a agremiação enseja para o ano que vem um enredo em homenagem à Betina Albuquerque cujos registros de canonização já foram delegados aos ministros do vaticano e que na passarela da alegria será lembrada com sangue suor e muitas penas.... de pavão.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Procura-se um idiota...

Em virtude da recente e não anunciada escassez de idiotas no mercado de varejo, saíram correndo às ruas à procura de alguém que se prestasse a ser o novo idiota do momento, alguém com potencial inequívoco para a idiotice, que talhasse aquele perfil idiota típico dos aspirantes ao trono dos idiotas, um não-se-sabe-quem com certo rebolado idiota que se encaixasse aos padrões idiotas, e, sobretudo, alguma alma de eminência idiota que suportasse contente a carga de festejos, apupos hormonais, e toda a sorte de uivos coletivos que só aos idiotas verdadeiros é dado receber, e disso fazer a sua razão idiota de vida. Pois encontraram aquele a quem vislumbravam futuro tão promissor e imediatamente interpelaram o candidato com a pergunta já prenhe de expectativas, a saber, então, se ele aceitaria tornar-se um completo idiota para o bem completo de todos os que ansiavam pela eleição do mais novo idiota do momento, e por qual motivo eu aceitaria tornar-me um idiota, perguntou de volta o interpelado, ora, veja bem, o senhor já é praticamente um idiota completo, o que lhe falta é um trabalho mais efetivo de marketing, de venda da sua imagem para que os outros possam conhecer do senhor tudo o que é preciso que conheçam, e assim, portanto, lhe render as admirações e aplausos que só os idiotas verdadeiros em sua prática ininterrupta de idiotices diárias são alvo, e o que isso traria vantagens para mim, retrucou o quase convencido a tornar-se o novo idiota do momento, vantagens inúmeras, a começar por arrancar fora da sua pessoa qualquer qualidade de crise ou pensamentos nebulosos que possam por ventura vir a esfumaçar essa sua consciência de tendências idiotas – note que todo idiota que se preste a ser o que realmente mostra ser, ou seja, um retumbante idiota, é sempre dotado de uma alma translúcida e cristalina, quase feita do mesmo material dos cristais das lojas de taças de cristais – a assim alumiar-se sem medo da luz solar, e para que todos possam o ver naquilo que você realmente sente e mostra sentir, ou seja, dar ao conhecimento alheio todo um repertório vazio de frases feitas e de clichês já mastigados por não sei quantas outras mandíbulas – note que o verdadeiro e completo idiota é sempre esse arauto da voz pública, um legítimo representante do matraquear anônimo da massa sem rosto – e dessa forma, então, cair nos braços daqueles que estarão preparados para carregá-lo até o lugar em que você disser que deseja estacionar, ainda que esse lugar seja o inferno. E além de tudo isso, saiba que o idiota com carteirinha de idiota, para além de todas as vantagens citadas, exala também o raro perfume do charme, esse elixir que faz levitar as narinas dos que tem narinas para cheirar mas que nunca souberam, ele próprios, vaporizar pelos sovacos o aroma que tanto admiram, porque o idiota é exatamente isso, a projeção estúpida e idiota daquilo que os outros, por falta de tarimba ou disciplina para galgar o cume rarefeito da idiotice, sonharam um dia poder ser. E já convencido de dar-se ao sacrifício de vir a ocupar o lugar vago de o idiota do momento, o sujeito interpelado só reuniu fôlego para mais uma única de fulminante pergunta, essa que veio a ser, e se eu quiser deixar o bigode crescer, sobre isso trataremos mais adiante, a bem da verdade é que já faz algum tempo em que não temos um idiota-de-bigodes e talvez seja esse o exato momento de apresentar ao povo um novíssimo idiota-de-bigodes, talvez um idiota-de-bigodes venha a ser um idiota-de-bigodes-de-meia-idade, quem sabe até um idiota-de-bigodes-grisalhos-de-meia-idade, não deixa de ser uma excelente sugestão!


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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Fábulas: # A Loja dos Suicidas...

Um suicida entrou na loja de artigos para suicídio e perguntou ao atendente se a corda da forca era de qualidade, ao que recebeu como resposta que era sim, protocolada, inclusive, pelo órgão público que regia a satisfação dos consumidores para produtos vendidos no comércio varejista, e, ainda assim, havendo qualquer problema de fabricação, que voltasse imediatamente que a troca seria garantida, mas que duvidava peremptoriamente de que o material fosse falhar, uma vez que ontem mesmo havia vendido o mesmo produto para um velho hipocondríaco cujo nome já aparecia na sessão de obituários do jornal, veja, aqui está o obituário para que não me deixe passar por mentiroso, ótimo então, disse o suicida, mas e quanto ao patíbulo, isso não fornecemos, é de responsabilidade do consumidor providenciar onde pendurar a corda bem como uma cadeira ou coisa que o valha para equilibrar-se a fim de desequilibrar-se depois para aí sim pender pendurado pelo pescoço e enfim suicidar-se, mas isso é muito difícil, alegou o suicida, não é possível que alguém ajude-me a realizar tal procedimento, alguém da loja mesmo, quem sabe até mesmo o senhor que já está bastante acostumado com os mecanismos de incentivo da prática alheia de se ceifar a vida, definitivamente não, meu senhor, nesse caso eu me tornaria assassino, o que é, evidentemente, absurdo, uma vez que eu apenas ofereço produtos para que as pessoas se assassinem deliberadamente, o que me enche de satisfação e orgulho, uma vez que me sinto bastante realizado quando alguém decide mandar uma banana para essa vida sem sentido e sem cor que por sabe qual lá motivo nos acostumamos a amar, o senhor fala como um verdadeiro suicida, é exatamente isso o que penso, pois acha que nunca tentei me suicidar, evidentemente que sim, e várias vezes, e por que nunca o conseguiu, é essa pergunta que martela a minha cabeça dia e noite, todas as vezes em que tento engolir um veneno, cortar os pulsos, meter uma bala na cabeça, alguma coisa acontece que impede a minha ida ao além devolvendo-me a esse desgraçado ao qual já acostumei-me a ser, não seja por isso, eu poderia muito bem empurrá-lo do parapeito do meu apartamento, são quinze andares, aposto que ao chegar lá embaixo o senhor já não mais existiria, ou existiria somente a vossa carcaça estatelada ao chão, mas aí o senhor é quem se tornaria um assassino, pois eu não me importo, uma vez que logo depois seria eu a dizer adeus à vida ao fazer uso dessa corda que teria de encontrar algum lugar para amarrar e depois equilibrar-me numa cadeira ou coisa que o valha e depois desequilibrar-me para aí então pender pendurado com o pescoço asfixiado, o senhor é muito gentil, vamos fazer assim então, eu o espero até conseguir enforcar-se, depois, se tudo der certo, eu me atiro janela abaixo, poderia ser assim sim, mas, se o senhor não se importa, eu gostaria de vê-lo morto primeiro, isso me daria um empurrãozinho final, o ânimo decisivo para dar cabo da minha própria vida, então o seu desejo é matar-me jogando-me janela abaixo, de forma alguma, meu senhor, não me tome por outra coisa que não sou, meu desejo é ajudá-lo a se matar, uma vez que o senhor mesmo foi quem confessou que há tempos empaca nisso e não consegue matar-se, pois isso é o que eu tento fazer, afinal, sou eu quem vende artigos para suicidas e não o senhor, disso não posso contrariá-lo, então ponha-se daqui para fora e não me aborreça mais, farei isso sim e desculpe-me por aborrecê-lo, e ficaria muito grato caso o senhor soubesse de uma vaga para trabalhar como vendedor nessa sua loja de artigos para suicidas e pudesse eu, quem sabe, vir a ocupá-la, para isso acontecer teria que me matar, meu senhor, a loja só tem vaga para um único vendedor que sou eu, não seja por isso, para que essa arma, não se assuste, eu só vou puxar o gatilho, ajudá-lo a se matar, exatamente como o senhor sempre o quis, mas isso o tornaria um assassino, e qual é a diferença entre matar os outros por tabela e matá-los diretamente, a diferença é enorme, pois eu não vejo a coisa assim e além disso eu preciso de um emprego, portanto, foi um prazer conhecê-lo meu senhor, e tenho certeza de que a corda me seria muito útil caso fosse eu a querer aparecer amanhã nas páginas dos obituários...

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Fábulas: # O Árido Fim de Guilhermina Gólgota...

Encontrou-se a solução para as torneiras secas: Guilhermina Gólgota. Bastava a cantora lírica que lembrava garganta no nome soltar o gogó para fazer verter água pelos canos. E Guilhermina Gólgota fora durante muitos anos requisitada aos mais diversos fins, transformando desertos em represas caudalosas, riachos em corredeiras espumantes, poças em lagos de margens largas, e até mesmo emprestando suas árias e arpejos às campanhas dos políticos que utilizavam de seu nome para dizer que quem tem Guilhermina dá-se ao luxo de dispensar os labores invisíveis de São Pedro. Mas esqueceram-se de que é também da qualidade do ser humano - e Guilhermina Gólgota não furtava-se de tal alcunha imposta pelo destino -, secar. E Guilhermina, a medida que o tempo passava, ia ela própria secando, murchando feito uma uva-passa de ceia de natal. E embora sua voz ainda permanecesse altiva e eficientíssima no cumprimento da tarefa que lhe deu prestígio, chegou o momento em que a aridez subiu uma oitava e lhe surrupiou a alma, e junto com ela a garganta. Desde então os tempos de augúrio vaticinado pelos pessimistas fez-se palpável. E já não há agora um único miserável esperançoso que debaixo do chuveiro inoperante não tente imitar o zelo operístico de Guilhermina Gólgota numa triste expectativa piedosa de que alguma gota possa compadecer-se desse nauseabundo fedor digno de alguma apoteose apocalíptica
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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Fábulas: # Uma solução para a cegueira...

Cônscia de que as suas lentes de aumento oculares não faziam enxergar o mais bem intencionado dos mentecaptos, a empresa tratou de enveredar para outro ramo e começou a produzir tapadeiras acústicas para as orelhas, no que alcançou um resultado estupendo, uma vez que privados dos zumbidos descartáveis da vida, até mesmo o mais teimoso dos mentecaptos estrábicos voltava a enxergar, senão até a lonjura do horizonte, ao menos até a distância da verruga que lhe brotava na ponta úmida do nariz batatudo...
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Fábulas: # O pronunciamento de Tobias Paschoaletto...

Tobias Paschoaletto chegou ao parquinho de diversões escoltado por toda a sorte de repórteres e homens abastados da imprensa investigativa para aquilo de deveria ser uma imperiosa revelação: tomaria sozinho assento na roda-gigante do local e quando lá em cima no topo rarefeito chegasse proclamaria aos ventos uma verdade incontestável que a todos pairava subtraída pelo véu viciado dos pés soterrados ao chão, porém não contara ele, o pobre Tobias Paschoaletto, com a cadência ininterrupta da engenhoca redonda, obliterando, portanto, uma parada completa lá do alto para que assim finalmente pudesse tomar fôlego e despejar o verbo para o registro da massa critica que debaixo empinava seus queixos curiosos, e tampouco dera-se conta da velocidade que a esfera metálica empreendia nas suas voltas repetidas, coisa realmente - não se sabe se por conta de algum sabotador que escolhera aquele exato instante para vingar-se do Paschoaletto ou mesmo por mero defeito a que todas as traquitanas estão sujeitas - excedia os padrões normais, fato que, consumado o périplo, desembocou no registro de uma única e derradeira frase entremeada por golfadas de suspiro desesperado e onde se lia:

- Deixe-me descer dessa maldita geringonça...!

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