Uma borboleta qualquer, do tipo de borboleta que não
causaria comoção alguma, dessas borboletas que deixando de existir não exigiria
do mundo outra coisa que continuar a ser exatamente o que é: um mundo indiferente
às borboletas sem talento... Pois então, uma borboleta desse tipo, resolveu
bater asas para dentro do vagão lotado do trem.
O doutor em direito espanava suas Datas Máximas Vênias em
direção ao bicho que insistia em revoar juridicamente por sobre sua nobre cabeça,
já elucubrando sobre qual seria o código referente ao crime de invasão de
propriedade.
O médico interpelava o exíguo animal na base de uma conduta
ética invejável aos olhos dos que sofrem a certeza de uma derrocada iminente,
tentando minimizar a dor da pobrezinha com uma pancada firme do jornal que
trazia enrolado debaixo do braço.
O padre fazia o sinal da cruz ao mesmo tempo em que maldizia
a Deus-Todo-Poderoso em nome das criaturas esvoaçantes que vieram ao mundo sem
propósito algum, desconhecendo o evangelho das lagartas, ou de qualquer ser
voador que o valha, que tenha compartilhado no seu conteúdo o caridoso exemplo
de algo com asas que se ofereceu em sacrifício na defesa dos companheiros de
espécie.
Como é possível que uma coisa tão desimportante possa
atrapalhar a concentração de elementos tão cientes da sua importância para com o
destino das coisas desse mundo?
A criancinha no colo da mãe admirava-se com as batidas
frenéticas das asas do bicho contra o teto do vagão, mal adivinhando que para
cada sequência de ações daquela, uma energia fulgurante se esvaía da pequena
borboleta, restando sabe-se lá quanto mais de força para que tudo terminasse
sem a tão aguardada apoteose seguida de aplausos.
Saí do trem antes de acompanhar o epílogo da borboleta, mas
consciente de que aquele pobre animal teria percorrido uma distância inimaginável
para sua compleição física.
Teria a borboleta sabido disso e escolhido sua própria
aventura? Ou foi o destino que lhe enfiou onde estava sem direito de apelação?
De qualquer maneira, um prêmio de distâncias percorridas
seria lhe dado, caso o céu das borboletas fosse um céu justo, reconhecendo
tamanho feito.
No dia seguinte embarquei no mesmo trem da borboleta da
véspera...
Procurei a borboleta.
E nada de borboleta alguma.
Talvez tenha me equivocado. Talvez ela não tenha morrido.
Talvez as portas tivessem se aberto numa estação distante daquela em que eu
sempre salto – e que nunca visitei -, e com o que restasse das suas forças, voado
para destinos desconhecidos.
Filosofia demais para mim, que dentro do vagão mais parecia
uma sardinha encerrada numa lata móvel de alumínio ligeiro, mais um exemplar
qualquer de muitos outros semelhantes a mim, tipos que se deixassem de existir
não exigiria do mundo outra coisa senão caminhar em frente com destino à
próxima estação.
Lá me fui, de novo e mais uma vez, vestido com minha
elegância...
Caminhando para o mesmo lugar de sempre, enquanto durar
minhas energias...
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