Ao voltar para casa, na mesmice daquele caminho que por
tantas vezes soube sem graça – culpa do hábito que tudo tinge com a cor cinza
do já-sei-como-faz – enfim, assim como já convencido pelo tédio, atravessei com
o olhar a janela do carro numa expectativa de ter nada com que me surpreender,
e foi aí quando vi aquilo que nas mãos de um artista daria um quadro, e se
pudesse eu fazer uso das tintas para emudecer as palavras, faria já e sem
pressa, porque a imagem viva daquele fragmento de vida dificilmente com frases
posso eu dar conta de pintar; mas, por triste que seja, outro instrumento que
não o verbo calaria essas mãos inábeis, então tento aqui mostrar o que vi,
convidando quem me lê a ver a cena que certamente já foi apagada pelo tempo, e
que nem sonha mais em se repetir outra vez. A poucos metros de onde eu estava,
bem no meio da calçada, um guarda-chuva agonizava. Não havia sinal do seu dono
por perto, apenas o guarda-chuva, que retorcido nos seus arames já maltratados
pelo uso, ali pendia torto, estatelado, sendo aos poucos dominado pelo vento
que soprava. Mas a cena não estava completa, porque um pedestre que passava
naquele exato instante – um desses abençoados sem qualquer ímpeto heróico, mas
que registra seu feito na história somente porque estava no lugar certo e na
hora certa -, esse transeunte sem nome, na humildade da sua conduta, entendeu
que o objeto merecia ajuda, e não mais do que um segundo decorreu para que eu
testemunhasse aquele gesto que até então só havia visto quando o vitimado era
humano, e não um treco inanimado. O senhor dos seus mais de cinquenta anos, já
bastante conhecedor das tragédias dos guarda-chuvas abandonados a esmo, parou
ao lado daquele que pedia ajuda, e numa atitude simples de quem entende que o
tempo é o principal vilão de tudo e de todos, agarrou uma das pontas da lona
que sambava já totalmente desgarrada da haste metálica. Foi só isso, somente
isso – tão rápido quanto um clique fotográfico, talvez um fotograma dum rolo de
filme ou o tempo morto de uma sincopa no meio do barulho da sinfonia. O diálogo
entre os dois sumiu, ou teve de sumir para mim, porque o sinal de trânsito
abriu e eu fui obrigado a arrancar com o carro antes que o sujeito que vinha atrás
rendesse alguma homenagem lisonjeira à minha conduta de condutor distraído que
se deixa levar por cenas destituídas de valor quando o assunto é melhorar a tão
combalida alma humana. Mas eu protesto! Aquele homem, ainda que quisesse
avaliar o guarda-chuva para ver se poderia surrupiá-lo para si, num simples
dobrar de costas em direção ao dito cujo, naquele curvar-se seguido do tocar as
pontas da lona colorida com seus dedos tremelicantes, somente aquilo já foi
suficiente para ver o que eu queria ver: a solidariedade de alguém por algo que
dificilmente terá recomposta a sua história de dignidade; o encontro de
despedida que a todos os instantes a vida nos dá um jeito de obrigar a
participar, e que quase sempre damos um jeito de seguir em frente pela calçada,
como se não fôssemos nós uma das partes protagonistas da trama em curso. Muita
filosofia para um simples guarda-chuva maltrapilho, é verdade... mas são essas
as melhores filosofias que guardo comigo, justamente as que nada querem dizer,
dizendo tudo.
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