AQUI JAZ UM ESTACIONAMENTO...
Há uma idolatria na morte. Entre lágrimas e soluços, invejamos o morto pela sua tremenda sorte. Vá com Deus, bem certo, é um lamento, mas não para esse que vai, senão para aquele que fica. Como ousa partir dessa para uma melhor? E eu aqui, forçado a continuar o baile mascarado dessa tragicomédia existencial? Mas se o defunto é um viajante de bagagem desejada – e também temida, ‘ser ou não ser, eis a questão’, já dizia o menino de mente nebulosa da Dinamarca -, há uma espécie de cadáver que não desperta qualquer admiração, antes produzindo gritos de ‘urra! Vá de reto pros quinto dos inferno!’ naqueles que, presos à vida, jogam serpentinas bendizendo tão desejada partida. Digo a respeito de um estacionamento que acaba de morrer aqui ao lado. Isso mesmo, um estacionamento bateu as botas, escafedeu, puff! Se ainda não inventaram um velório para as coisas falecidas, invento eu um epitáfio para tudo o que não vive e mesmo assim deixa de existir. Lá vai: ‘Aqui jaz todo um cemitério de piche, ontem tapete de latas quentes de alumínio sobre rodas, hoje (graças ao Senhor Amado) deserto de restos de para-lamas e pedaços soltos de molas’. E lá se foi o bendito estacionamento, e junto com ele toda a sorte de funcionários com cara de Chevrolet. Já notaram essa particularidade curiosíssima que transfere a fisionomia das pessoas que trabalham num determinado lugar os contornos inanimados daquilo que manipulam? Não é preciso ir muito longe para identificar um senhor advogado; o sujeito-das-leis-supremas não só tem cara de Ata Jurídica, fazendo levantar alternadamente uma ou outra sobrancelha dependendo do argumento do juiz corregedor, como também exala Datas Máximas Vênias debaixo dos braços, substituindo o famoso bodum dos trabalhadores braçais por uma justa reverência só reservada a quem passou não sei quantos anos tentando passar no exame da OAB. O mesmo ocorre com os médicos que, salvo a ala dos legistas-cara-de-caveira-carcomida-por-vermes-subterrâneos, nos brindam com um semblante de avental branco polvilhado de prognósticos embebidos de éter. Os funcionários do famigerado estacionamento, que hoje choram os anos dourados de pátio recheado, tinham todos caras de Chevrolet usado, fazendo de suas gargantas perfeitos escapamentos tubulares, vistas de faróis e pneus rechonchudos nas ancas laterais. Nunca a visão de uma morte pareceu tão agradável, tornando o vazio do lugar um recanto de paz inimaginável para o mais otimista dos ciclistas e pedestres. A morte de um estacionamento é uma redundância, afinal, o que é aquilo senão um cercado já cadavérico para o repouso de brucutus mecânicos ligados ao mundo pela UTI dos engarrafados? Dia após dia um Chevrolet parava ali para sugar as últimas esperanças de um dia voltar a andar nessas ruas já abarrotadas de mortos-vivos, e circulava faceiro pelas vielas estreitas, caminhos formados pela traseira de companheiros metálicos, enfileirados como num campo de extermínio. Enquanto a equipe de Funcionários-Chevrolets dava um jeito de arrumar um leito pedregoso para o moribundo, outro time, o de Lavadores-de-Quase-Defuntos, era acionado todas às vezes que a família do parente exigia um tratamento digno ao ente veicular. À essa matilha de esguichadores, uma cara de balde-de-sabão fazia imprimir a líquida função no tal asilo de cuidados paliativos. E de repente, de um dia para outro, tudo se foi, puff! Aqui jaz um estacionamento! Bendita a bomba de Hiroshima que tratou de cenografar o lugar com restos de trapos, guichês, vidros, cancelas eletrônicas, cupons e toda qualidade de lixo contaminado pela doença dos hóspedes que por lá passaram. No futuro, quando escavações trouxerem à tona os fósseis inanimados do que um dia foi um quadrado inútil de paradas imprestáveis, nossos herdeiros, pilotos de máquinas de tele-transporte, ficarão absortos com tanta idiotice, perda de tempo e falta de imaginação que a nós, prisioneiros do agora, atribuíamos com retumbante orgulho! Espero que todos os Chevrolets padeçam no inferno, que o diabo e seus diabinhos continuem a montar em suas motocas para atazanar os pecadores ad eternun, que os caminhões afundem em lagos de enxofre sulfuroso, que toda coisa que ande motorizada queime no mármore do Tinhoso e que..... bem..... e que eu, pobre de mim, encontre prontamente um novo local para estacionar meu carro maldito, dessa vez um estacionamento que empregue funcionários com cara de Ford-Fiesta (modelo retrô).
VRUMMMM Amém!
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