Lancei um olhar através da janela e vi lá fora uma massa
branca dominando a paisagem. Fog em Pirituba? Não sei. Não moro em Pirituba.
Nem sei onde fica. Mas cá onde estou, vizinho de Pirituba e a milhas do Big
Ben, fog se chama neblina. Era neblina. Mas lembrou-me a fog do além mar.
Resolvi ligar para a rainha. Fazia tempo que não batia um papo com a realeza.
Não pude comparecer ao jubileu dos 60 anos de reinado da Eliza. Compromissos
tropicais me prenderam abaixo do equador. Essa era uma oportunidade de me
desculpar e perguntar como andavam as coisas no castelo de Buckingham. A última
vez que lá estive a grama do jardim estava alta demais, tão alta que
dificultava as nossas partidas de cricket. Por isso que nunca levei a sério as
gozações do jovem Will em razão das lavadas que tomei. Só consigo colocar meu
time em campo com a grama rala. Mato alto é bom para a caça a raposa. Lembro-me
perfeitamente do Watson, o beagle mais talentoso do mundo para esse tipo de
esporte. Havia disputas homéricas para ver quem ganhava o direito de incluir o
velho Watson na matilha. Quem contasse com o Watson na equipe já saia na
frente. O faro do bicho surpreendia a todos. Até o Duque da Cornualha, que
estampava um narigão de peixe-boi, se rendia ao talento insuperável do focinho
do velho Watson. Por onde andará agora o velho Watson? Na sua tenra infância
canina, quando ainda nem sonhava em ganhar o título de Dog-of-Wales, dormitava
tranquilamente aos pés da Rainha-Mãe. Oh, Mother-Queen! Que Deus a tenha.
Quantas e quantas vezes não rodei o gramophone para ninar a Rainha-Mãe na sua
alcova? Sua ópera predileta era a Norma de Bellini. Até hoje quando ouço a
Maria Callas interpretando a casta diva me recordo do ronco suave da
Rainha-Mãe. Que Deus a tenha. Que Deus os tenha, melhor dizendo. A julgar pelo
tempo que já transcorreu, Watson já deve estar novamente fungando a sola do pé
da Rainha-Mãe. Chulé de raposa velha, era a piada que fazíamos. Humor inglês
pode. Humor inglês não é que nem o nosso, politicamente-correto. Humor inglês é
polite, só polite. Se não entende inglês, caro leitor, apanhe um dicionário.
The book is on the table. God save the Queen! Alô? Your highness? Is that you?
Não era. Era o mordomo. A rainha estava fazendo sua toalete. Rainha não vai ao
banheiro. Rainha faz a sua toalete. Aguardei na linha durante uma breve
eternidade que não sei exatamente precisar o quanto durou. Enquanto segurava o
gancho do telefone, a paisagem lá fora se tornava surpreendentemente cada vez
mais britânica. Pirituba virou Londres? Não sei, nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Mas os meus ouvidos não me deixavam enganar. O barulho da buzina
era inconfundível. E vinha lá de fora. Alguma embarcação acenava sua passagem
por debaixo da london’s bridge. A mesma ponte que havia queimado por completo
no grande incêndio de 1666. Deu uma vontade louca de prevenir a rainha sobre o perigo do
uso freqüente da lareira no quarto de dormir. É hábito da Eliza acender o fogo
antes de pegar no sono. O ruído das lenhas estalando é como o arauto de Morpheus,
um verdadeiro bálsamo para os seus sonhos. Como sei disso? Elementar meu caro
Watson (in memoriam). Sei disso porque era eu mesmo quem se prontificava a
adentrar nos aposentos da realeza para animar as brasas. Sentia-me o servo mais
sortudo do mundo. Nem a guarda real tinha a oportunidade de ver a rainha de
camisola. Camisola e coroa. Sim, porque Eliza nunca abria mão da coroa. Não era
só no trono. Quer dizer, até no trono a coroa era adereço obrigatório. Imagine
Eliza fazendo sua toalete de coroa! Ah quantas saudades da minha grande e
querida rainha! Hello? Queen
my dear? Is that you? Não. Não era. Era o mordomo pedindo-me a little
more paciência. A your highness estava tendo um pequeno inconveniente com o
desjejum. Parece que a ameixa negra da Guatemala, uma das iguarias obrigatórias
em Buckingham, havia passado da data de validade. Agora cabia ao trono real
despachar a notícia do acontecido. Não me importava em esperar. Continuava com
o gancho do telefone na mão, ansioso e rígido como uma estátua. Quando se trata
de esperar pela rainha, tudo vale à pena. Até virar estátua de cera no museu da
Madame Tussauds. E foi assim, meio encerado e com o gancho na mão, que ouvi a
trupe de atores cantando logo abaixo da minha janela. Era a companhia de
Shakespeare que se dirigia ao The Globe para a estreia de Hamlet! Pirituba
virou a Dinamarca? Hamlet em Pirituba? Não sei. Nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Quiçá Hamlet! Mas eu não estava sonhando, não! Haveria em breve
um ‘Ser ou não ser eis a questão’. Deu uma vontade louca de convidar a rainha
para assistir ao espetáculo. Pensando bem, talvez não fosse conveniente. Como a
Queen iria receber a cena dos coveiros? Quando se chega à determinada idade é
melhor evitar o uso das ironias. Pode ofender. Ou pior, insinuar que em breve
tudo virará pó, até a constituição firme e sólida da realeza. E isso seria
inadmissível. Imagine a rainha voltando como fantasma no ato seguinte? Segundo
o enredo, Charles teria de matar o tio. Mas sabe-se lá se há um tio na sucessão
da coroa! A coisa enrolaria de tal forma que correria o risco de virar trama de
Nelson Rodrigues. Longe de mim acusar a realeza de bonitinha, mas ordinária! Eu
iria para o calabouço bater um papo com a Mary Stuart! Hello? Your highness?
Não era. Era o mordomo. Teria de esperar mais um tempinho. Esperei. Ainda
espero. Para falar com a rainha espero até virar uma caveira carcomida por
vermes...
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