Sou um pilantra. Como prova irrefutável dessa minha
qualidade, entrego ao seu conhecimento, caro leitor, as minhas duas nobres
ocupações profissionais. Sou ator e professor. Justamente as duas maiores
cátedras PhD no exercício da pilantrice aguda. O primeiro finge que acredita
para produzir verdade naquilo que não existe. O segundo acredita que ensina o
que é impossível conhecer na esperança de que os outros entendam o que ele
próprio desconhece. Só sei que nada sei. Depois de Sócrates ninguém mais
deveria ter coragem de voltar do recreio para assistir a aula de química! E por
falar em química, até hoje não faço a menor ideia do que seja 1 mol! Você sabe
o que raios é 1 mol, caro leitor? Quem nunca passou noites em claro a queimar
miolos na esperança de entender a maldita fórmula do mol, para ao final da
prova continuar na mais profunda ignorância a respeito da utilidade metafísica
desse número maçônico? A maçonaria deve ter surgido ao redor desse mistério
transcendental. E de dentro da maçonaria apareceu a teoria de que o Ronaldinho
Gaúcho joga futebol. Outro mistério insolúvel que nos acompanha até os dias
atuais. Tenho a impressão de que o enigma da esfinge é exatamente esse: ‘Para
que raios serve um mol, reles mortal? Decifra-me ou devoro-te!’. Quem souber a
resposta desbanca o Rei Édipo no comando de Tebas ou então vira imediatamente
um Buda iluminado, desses que tomam chá verde no cume de algum morro do Tibete
na companhia do Dalai Lama. Antes disso, só fazendo muita aula de ioga para dar
conta de equilibrar tamanha carga de ignorância. Quem tenta remar na contramão
da ignorância recebe de imediato o diploma de bacharel da cafajestagem.
Cafajeste é diferente de pilantra. O cafajeste acredita no sucesso do seu
empreendimento. O pilantra constrói o edifício já com o dedo no botão da
demolição. No rumo da cafajestagem, ator e o professor andam no sentido
contrário. O ator e o professor exercitam a fraude, não o sucesso. Ser ou não
ser, eis a questão. Pois é. Sou uma fraude. Mas veja bem, minha fraude é um
atributo da minha capacidade de ler o mundo, não uma contingência do meu
caráter. Porque pilantragem de caráter não é motivo de orgulho algum.
Pilantragem de caráter é moeda comum. No cardápio diário, a pilantragem vem no
prato como arroz e feijão. Honestidade é outra coisa. Honestidade é corte
nobre. Honestidade é filé mignon. Nem todos são honestos, mas pilantras somos
todos, incluindo os poucos honestos. Ninguém nasce livre da pilantragem. É como
nascer sem esqueleto. Sem esqueleto não há possibilidade de vida humana.
Tirem-me o esqueleto e eu perco num estalo de dedos a capacidade de digitar
essas linhas profundamente sábias. Não faça essa cara de quem adoraria ver para
crer, caro leitor! Não conspire a favor da fuga repentina do meu fêmur e de
seus companheiros ossudos! Quem perderia mais com isso seria você. Você e o
mundo. Tudo ficaria mais cinza e mais árido, com menos poesia! Mas eu resisto!
Vá desossar o frango do seu almoço e me deixe em paz! Mas, como eu ia dizendo, os
alicerces são fundamentais. No nosso caso, a pilantragem é o que nos mantém
erguidos. O esqueleto moral. Se nos fosse possível safar dessa triste sina,
escolheríamos não abandonar esse resort chamado terra ao cabo de algumas poucas
temporadas. Quando a diária chega ao fim não há gerente que apareça para
escutar nossos clamorosos pedidos de prorrogação das férias. A vida é uma
gincana de pilantrices. A prova disso é que ela não dura. Nesse caso, uma pedra
é mais digna e honesta que você, caro leitor. A pedra resiste ao tempo, custe o
que custar. Você poderia refutar dizendo que a pedra não filosofa, por isso é
infinitamente menos merecedora da dignidade que carregamos. É verdade. Mas
filosofar a troco de quê, pode me dizer? Já vimos que a busca sagrada pela
resposta do santo-mol não nos leva a lugar algum. Alguma coisa de reconhecida
relevância foi descoberta desde que o homem deixou de arrastar sua mulher pelos
cabelos para dentro das cavernas? Não estou computando o Steve Jobs nessa
parada nem o seu olhar sedento para os mais recentes e notáveis inutensílios
tecnológicos. Um ipad ou uma máquina de xerox não aliviam em nada a pilantragem
da nossa condição. Ao contrário. Enchem-nos de novos desejos para em seguida
ceifá-los sem dó nem piedade. Quanto mais purpurina, maior a ressaca ao final da
festa. São por essas razões que um pilantra de ofício se dá bem. O pilantra de
ofício tem por princípio desconfiar daquilo que faz, compreendendo a
impossibilidade de ter sucesso numa vida fadada ao limbo do esquecimento.
Conhecer pressupõe fracassar. Não há outra medida possível senão essa. O
pilantra de ofício sabe que suas palavras são como pétalas lançadas ao vento.
Podem encantar durante um breve período, mas duram pouco no ar. Acabam
despencando ao chão para serem pisoteadas e amassadas pelo exército de
distraídos do qual todos nós fazemos parte. Palavras, palavras, palavras! Escrevo
toda essa ladainha e me dou conta de que estou remoendo sem perceber as crises
de consciência do jovem Hamlet. E essa crise é justamente aquela que faz parte
do ofício do ator – como dar conta de ser verdadeiro se a matéria prima da
construção do personagem parte sempre da mentira? Sabe qual é a raiz
etimológica da palavra ‘ator’, caro leitor? [Rimou]. Respondo: Ator =
Hipócrates = Hipócrita = Aquele que finge ser o que não é (tudo no dicionário,
confira!) Não é incrível? Para dar conta de uma verdade suprema, a da nossa
inconstância e efemeridade, temos que recorrer ao que não existe, a poesia como
ferramenta de algo que passa longe da comprovação científica. Enfim, fuja da
verdade para que alcance alguma resposta que lhe seja minimamente verossímil no
que se refere ao conteúdo concreto da vida. O pilantra é o único que se salva,
caro leitor! Sejais vós, leitores, também um bando de pilantras! Nessa aula de
filosofia de botequim, acho que acabei falando mais do ator e menos do
professor. Gostaria de dedicar mais linhas a essa nobre profissão. Mas deixo
para amanhã. Quinta feira é o dia do professor. Não percam a aula! E não terei
piedade com quem chegar atrasado! Tenham todos um bom dia. Dispensados!
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