Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas. No início por
distração, depois por hábito. Desde a sua tenra infância, Alcebíades-Sombra
gostava de arrastar um guarda-chuva atrás de si. Ainda que o sol estivesse
pleno no firmamento, Alcebíades-Sombra não economizava escusas que justificassem sua
extrema necessidade de sair de casa junto ao seu fiel companheiro de luta. Como
um Dom Quixote das intempéries chuvosas, o menino não ousava pôr-se em movimento
sem a companhia do seu Sancho Pança de cabo e lona. Se o prólogo anunciava
aventuras inéditas, o epílogo redigia sempre as mesmas linhas: o retorno do
garoto, sempre sozinho, sem o seu guarda-chuva a tiracolo. Quando chovia, as
coisas não se alteravam. Talvez imaginássemos que a chuva pudesse tornar tudo
mais fácil para Alcebíades-Sombra. Uma vez útil, o objeto não sairia da mão do
seu dono, evitando lapsos de distração que desembocassem na perda sumária do
dito cujo. Ledo engano. Em dias de tormenta, era comum ver Alcebíades Sombra
regressar ensopado ao local de onde partira. Sua mãe o advertia para nunca mais
incorrer em tal tipo de esquecimento, recorrendo muitas vezes a castigos
exemplares. Mas parece que o menino nunca se emendava. Na adolescência,
enquanto as espinhas apareciam, os guarda-chuvas continuavam a sumir. Vejamos
agora como se comportava Alcebíades-Sombra na sua idade madura. Fase em que os
guarda-chuvas deixam de ser extravagantes e animados para ganhar contornos
sóbrios e bem comportados. Já com barba feita no rosto, onde quer que
Alcebíades-Sombra desejasse ir, continuava a levar consigo seu guarda-chuva.
Dessa vez preferia modelos clássicos, com acionamento automático da aba, cuja
estrutura trançada por arames de alumínio formava desenhos geométricos
admiráveis. Mas quem disse que glamour altera caráter? A coisa toda tinha perdido
os ares de aventura para ingressar no perigoso terreno das necessidades do
hábito. A rotina era sempre a mesma. Saia de casa bem de manhãzinha para
cumprir com suas obrigações e mais tarde voltava já desincumbido do seu
companheiro de partida. Retornava contente ao seu lar, com a segurança de ter
desempenhado um bom papel como cidadão correto que era, mas bastava bater a
porta atrás de si para o sorriso lhe escapar. O semblante de Alcebíades-Sombra
de repente tornava-se lívido, de um tom sinistro tal qual uma máscara mortuária
dos filmes de ficção. Percebia, então, que algo estava errado, que voltara mais
leve do que quando partiu. Uma triste sensação de ausência acompanhava o
instante em que Alcebíades-Sombra tomava consciência do seu ato criminoso.
Repassava mentalmente todos os locais em que estivera com a esperança de no dia
seguinte recuperar o que havia perdido. Sempre em vão. Por algum mistério ainda
não revelado, nunca se encontravam os guarda-chuvas perdidos por Alcebíades-Sombra.
As noites eram duras para Alcebíades-Sombra. Raramente pegava no sono, e quando
conseguia fechar os olhos, terríveis pesadelos o acometiam. O enredo nunca
mudava: um guarda-chuva gigante fechava sobre sua cabeça, sufocando-o até a
morte. Mas o luto não durava muito. Alcebíades-Sombra encontrava razão para
velar sua dor somente durante o período em que a lua permanecia protagonista do
céu. Quando amanhecia, ainda um pouco cambaleante da ressaca moral da véspera, deparava-se
com um novo guarda-chuva recostado à porta de saída. O olhar de
Alcebíades-Sombra brilhava como se houvesse atravessado o vidro da maternidade
para ver seu filho encontrar o mundo pela primeira vez. Como não tinha filhos,
o novo guarda-chuva fazia o papel de restaurador dos laços afetivos, antes
combalidos. Mas a alegria não durava. O final do dia era sempre triste para
Alcebíades-Sombra. Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas e isso o fazia
sofrer. Algumas táticas foram testadas para tentar brecar o ciclo de tragédias
anunciadas. Primeiramente, Alcebíades-Sombra detectou o seu vício. A despeito
da vergonha pública onde a zombaria alheia pudesse vir a significar novas
feridas, Alcebíades-Sombra foi forte o suficiente para encarar de frente o seu
problema. Procurou um médico especialista em esquecimentos. O doutor receitou
alguns procedimentos que Alcebíades-Sombra deveria seguir com afinco. E assim
foi feito. Tirou fotos do guarda-chuva atual, e como continuava a perdê-los,
formou um mural enorme na parede da sala que rapidamente ganhou ares de altar.
Depois começou a batizar o guarda-chuva com nome próprio, e como continuava a
perdê-los, fazia orações diárias aos seus entes queridos que já não mais
estavam junto de seu pai amado. Enfim, todos os recursos foram esgotados e nada
funcionou. Até que em certo dia, Alcebíades-Sombra teve um mal súbito e morreu.
No seu enterro, São Pedro regou a cerimônia com uma chuva de lavar a alma.
Alcebíades-Sombra, lá onde estava, conseguia ver uma infinidade de amigos e
parentes que já não lembrava mais que tinha. Mas isso não foi o que mais o
emocionou. Do seu ângulo de visão, enxergava claramente um batalhão de rodelas
pretas, todas abertas e firmes, um verdadeiro exército de guarda-chuvas atentos
à sua lembrança. Ufa! Até que enfim Alcebíades-Sombra pôde reencontrar aquilo
que durante toda sua vida andou perdendo. E foi-se embora feliz.
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