domingo, 10 de junho de 2012

Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas...



Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas. No início por distração, depois por hábito. Desde a sua tenra infância, Alcebíades-Sombra gostava de arrastar um guarda-chuva atrás de si. Ainda que o sol estivesse pleno no firmamento, Alcebíades-Sombra não economizava escusas que justificassem sua extrema necessidade de sair de casa junto ao seu fiel companheiro de luta. Como um Dom Quixote das intempéries chuvosas, o menino não ousava pôr-se em movimento sem a companhia do seu Sancho Pança de cabo e lona. Se o prólogo anunciava aventuras inéditas, o epílogo redigia sempre as mesmas linhas: o retorno do garoto, sempre sozinho, sem o seu guarda-chuva a tiracolo. Quando chovia, as coisas não se alteravam. Talvez imaginássemos que a chuva pudesse tornar tudo mais fácil para Alcebíades-Sombra. Uma vez útil, o objeto não sairia da mão do seu dono, evitando lapsos de distração que desembocassem na perda sumária do dito cujo. Ledo engano. Em dias de tormenta, era comum ver Alcebíades Sombra regressar ensopado ao local de onde partira. Sua mãe o advertia para nunca mais incorrer em tal tipo de esquecimento, recorrendo muitas vezes a castigos exemplares. Mas parece que o menino nunca se emendava. Na adolescência, enquanto as espinhas apareciam, os guarda-chuvas continuavam a sumir. Vejamos agora como se comportava Alcebíades-Sombra na sua idade madura. Fase em que os guarda-chuvas deixam de ser extravagantes e animados para ganhar contornos sóbrios e bem comportados. Já com barba feita no rosto, onde quer que Alcebíades-Sombra desejasse ir, continuava a levar consigo seu guarda-chuva. Dessa vez preferia modelos clássicos, com acionamento automático da aba, cuja estrutura trançada por arames de alumínio formava desenhos geométricos admiráveis. Mas quem disse que glamour altera caráter? A coisa toda tinha perdido os ares de aventura para ingressar no perigoso terreno das necessidades do hábito. A rotina era sempre a mesma. Saia de casa bem de manhãzinha para cumprir com suas obrigações e mais tarde voltava já desincumbido do seu companheiro de partida. Retornava contente ao seu lar, com a segurança de ter desempenhado um bom papel como cidadão correto que era, mas bastava bater a porta atrás de si para o sorriso lhe escapar. O semblante de Alcebíades-Sombra de repente tornava-se lívido, de um tom sinistro tal qual uma máscara mortuária dos filmes de ficção. Percebia, então, que algo estava errado, que voltara mais leve do que quando partiu. Uma triste sensação de ausência acompanhava o instante em que Alcebíades-Sombra tomava consciência do seu ato criminoso. Repassava mentalmente todos os locais em que estivera com a esperança de no dia seguinte recuperar o que havia perdido. Sempre em vão. Por algum mistério ainda não revelado, nunca se encontravam os guarda-chuvas perdidos por Alcebíades-Sombra. As noites eram duras para Alcebíades-Sombra. Raramente pegava no sono, e quando conseguia fechar os olhos, terríveis pesadelos o acometiam. O enredo nunca mudava: um guarda-chuva gigante fechava sobre sua cabeça, sufocando-o até a morte. Mas o luto não durava muito. Alcebíades-Sombra encontrava razão para velar sua dor somente durante o período em que a lua permanecia protagonista do céu. Quando amanhecia, ainda um pouco cambaleante da ressaca moral da véspera, deparava-se com um novo guarda-chuva recostado à porta de saída. O olhar de Alcebíades-Sombra brilhava como se houvesse atravessado o vidro da maternidade para ver seu filho encontrar o mundo pela primeira vez. Como não tinha filhos, o novo guarda-chuva fazia o papel de restaurador dos laços afetivos, antes combalidos. Mas a alegria não durava. O final do dia era sempre triste para Alcebíades-Sombra. Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas e isso o fazia sofrer. Algumas táticas foram testadas para tentar brecar o ciclo de tragédias anunciadas. Primeiramente, Alcebíades-Sombra detectou o seu vício. A despeito da vergonha pública onde a zombaria alheia pudesse vir a significar novas feridas, Alcebíades-Sombra foi forte o suficiente para encarar de frente o seu problema. Procurou um médico especialista em esquecimentos. O doutor receitou alguns procedimentos que Alcebíades-Sombra deveria seguir com afinco. E assim foi feito. Tirou fotos do guarda-chuva atual, e como continuava a perdê-los, formou um mural enorme na parede da sala que rapidamente ganhou ares de altar. Depois começou a batizar o guarda-chuva com nome próprio, e como continuava a perdê-los, fazia orações diárias aos seus entes queridos que já não mais estavam junto de seu pai amado. Enfim, todos os recursos foram esgotados e nada funcionou. Até que em certo dia, Alcebíades-Sombra teve um mal súbito e morreu. No seu enterro, São Pedro regou a cerimônia com uma chuva de lavar a alma. Alcebíades-Sombra, lá onde estava, conseguia ver uma infinidade de amigos e parentes que já não lembrava mais que tinha. Mas isso não foi o que mais o emocionou. Do seu ângulo de visão, enxergava claramente um batalhão de rodelas pretas, todas abertas e firmes, um verdadeiro exército de guarda-chuvas atentos à sua lembrança. Ufa! Até que enfim Alcebíades-Sombra pôde reencontrar aquilo que durante toda sua vida andou perdendo. E foi-se embora feliz.  

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