A máquina Golifius tinha acabado de chegar à cidade. Todos
os habitantes, dos mais humildes aos mais nobres, foram recepcioná-la. A
pequena banda de sopros da prefeitura ensaiou meses a fio para não fazer feio
no grande evento. As meninas, acompanhadas de seus pais, trajavam vestidos de
cetim de cores claras. Por cima das cabecinhas, um laço enorme de rendas. Os
ternos dos cavalheiros foram desentocados dos guarda-roupas. Gravatas e
cartolas davam a importância da ocasião. Até mesmo as senhoras, normalmente
recatadas e entregues as labutas do lar, saíram às ruas para ver a chegada da
máquina Golifius. Os meninos resolveram não participar, preferindo dar
continuidade à peleja no campinho de terra batida Já a comunidade canina estava
representada por dois vira-latas sem nome, que entre uma coçada e outra no
lombo sarnento, apontavam os focinhos na direção do espetáculo. À tarde de sol
imprimia ao desfile uma luz âmbar, tornando tudo ainda mais fantástico. O vento
entrava num compasso de adágio majestoso e fazia esvoaçar tudo o que tocava. A
cena tinha um aspecto curioso de filme antigo, desses que a gente volta à fita
para rever um cenário que sabemos não existir mais. À frente do grande equipamento
estava Radamés-Nhócoli, o grande e respeitado empresário da máquina Golifius.
Quando finalmente o cortejo estacionou na praça principal, Radamés-Nhócoli
subiu num pequeno palanque e começou o seu discurso. Falava bem, com uma voz
clara de quem não mente. Explicava todas as características e funcionamento da
sua obra, detalhando cada peça e o seu papel dentro do gigantesco mecanismo ao
qual fazia parte. Quando terminou, os espectadores já estavam convencidos da
importância magistral da máquina Golifius. Difícil recuar no tempo e imaginar
como seria a vida sem essa espetacular obra da engenharia científica. O público
ouvia calado, absorto em pensamentos sublimes. Até a coceira dos vira-latas deu
um trégua. Era a própria confiança que enchia o peito dos habitantes da pequena
cidade. Quem não gostaria de abandonar o árduo ofício na roça para trabalhar no
funcionamento da majestosa e espetacular máquina Golifius? Fora a fama que
certamente recairia no colo do funcionário contratado – a foto na primeira
página do jornal do dia seguinte estava certamente garantida -, havia a questão
de experimentar de uma vez por todas a sensação de pertencer ao mundo moderno.
Era de conhecimento geral que a máquina Golifius representava o que de mais
novo a indústria moderna poderia construir. Só uma rápida olhada nos seus
mecanismos expostos já era suficiente parar provar tal teoria. Curiosamente,
ninguém pensava ou falava no salário, embora soubessem, por alguma estranha
convicção, que o montante compensaria o suor da empreitada. A bem da verdade,
não era difícil encontrar quem se dispusesse a fazer tudo de graça, sem ganhar
nem um tostão. O mais importante era vestir o uniforme de empregado da máquina
Golifius, custe o que custasse. E então, chegou o grande momento! A tensão
estava no ar. Dali a instantes, saberíamos quem seria o contratado para o
emprego. Havia somente uma vaga para o trabalho, mas isso não minava as
esperanças dos presentes, só aumentava a ansiedade. Senhas foram distribuídas à
multidão. Um a um, cada um a seu tempo, foi chamado para uma entrevista
particular. Uma banca especializada iria dar curso á seleção dentro de uma
pequena tenda armada ao lado do coreto. Algumas pombas pousaram no teto da
armação e lá de cima soltavam aquele som gutural, típico da espécie. Empresários
dos mais variados setores formavam essa junta de técnicos altamente
especializados no recrutamento das qualidades necessárias para dar
funcionamento a uma máquina do porte da Golifius. Era preciso analisar cada
candidato e de forma bastante minuciosa. Número 45! O silêncio era quebrado por
um senhor barrigudo e de bigodes que davam a volta no quarteirão, provavelmente
um representante do alto escalão das empresas Golifius. O candidato, suando e
pálido como uma folha em branco, se dirigia a passos trôpegos até sumir pela
entrada do gabinete improvisado. Para os que lá fora permaneciam, esperando sua
vez de entrar, a única coisa que conseguiam ouvir quando forçavam a escuta era
a sinfonia das aves, que lá de cima se postavam como arautos da crise de Tebas.
Ao final do processo, depois de cumprir com todas as entrevistas, o resultado
foi divulgado. Fulano de Tal havia conseguido a vaga! Sua família quase
desmaiou de emoção ao ouvir o anúncio de seu nome. De fato, no dia seguinte,
Fulano de Tal estampava sua foto na primeira página do jornal. O restante dos
habitantes voltou a empunhar a enxada, instrumento nada sofisticado, mas
altamente eficiente na localidade da roça. Fulano de Tal ganhou seu uniforme e
sumiu da cidade, levando sua família. Muito tempo depois, soubemos que Fulano
de Tal tinha enriquecido muito. Prosperou como ninguém. Quando perguntavam seu
nome, dizia com orgulho: ‘Sou Fulano de Tal, empregado da máquina Golifius’.
sexta-feira, 15 de junho de 2012
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Os palhaços tristes da história!
Quando os soldados da força policial O*O levaram para a
forca a dupla de palhaços engraçados, o general Hilário-Rabuja comia
tranquilamente um sanduíche de mortadela no sofá da sua casa. Buurp, foi o som
do seu arroto. A regra que vigorava era clara: quem risse ou fizesse rir,
virava presunto. Nessa sessão de frios, triste congestão tiveram as hienas da
África, obrigadas a engolir sua ironia e migrar para um campo de falta de
concentração na ilha de Cuba, onde mais tarde morreriam de rir do ditador bigodudo
que fumava há séculos o mesmo charuto de folha de uva. Bingo! O comunismo
estava por trás de tudo! Como sabemos? Descoberta fartamente documentada pelo
agente Ethan Hunt que adentrou as fronteiras do politburo russo para flagrar
Stalin seriíssimo, ensaiando secretamente a coreografia do ‘ai se eu te pego
aiai’. Palhaçadas? Só para desertores do movimento. Em terra de
revolucionários, quem move os lábios para cima sai da fila e vira traidor da
pátria. E o povo? Quem tem por pai bufões barbudos, sisudos e tristes, jamais
deve rir! Desrespeito mortal! A revolução que faria o proletariado subir ao
poder não permitia nenhuma piada. O primeiro capítulo do manifesto dizia de
forma peremptória que era dever de todo camarada de bem fechar a cara, armar-se
com sua foice e martelo e ceifar todo e qualquer soluço involuntário que
brotasse bem lá no âmago da região abdominal. Onde? Cientistas políticos da
China de Mao investigaram meses a fio a região íntima responsável por dar
origem ao impulso pecaminoso da ironia. Após passar pelo território dos gemidos
orgiásticos do ponto G – sem gozar! -, chegou-se finalmente a conclusão de que
o riso eclodia em alguma localidade diafragmal entre o umbigo e o apêndice
cartilaginoso das costelas, mais conhecido no linguajar medicinal como processo
xifóide. Bingo²! Era lá mesmo que o veneno se aninhava, dentro de uma
concavidade gástrica, oca e escura, longe das sinapses iluminadas do intelecto
pragmático! Triste confusão. Alguns espiões da KGB confundiram o diagnóstico com
dor de barriga, metralhando uma série de inocentes que corriam desesperados em
busca de um banheiro público na Praça Vermelha! Os laxantes foram recolhidos
das farmácias em caráter de urgência até que todo o equívoco fosse esclarecido.
Nenhum camarada queria correr o risco de ser pego pelo rabo e entrar para os
anais da traição como alguém que só fez merda na história revolucionária.
Burrrrp, nova interferência vaporosa de nosso general Hilário-Rabuja. Ai de
mim! Tragédia sem graça! E por falar em Aristóteles, o companheiro Karl, Karl
Marx, tratou logo de confiscar o tratado que o filósofo escrevera sobre o
gênero cômico, fazendo sumir, inclusive, a máscara sorridente que fazia par com
sua gêmea triste, ambas formando até então o símbolo milenar do teatro. Nada de
emoções baixas, agora só a catarse vigorava! Aristófanes e Moliére entraram
para a lista de procurados da justiça, cujas cabeças vivas valiam algo em torno
de um pacote de Café Pilão para socializar com a família. As recompensas eram
polpudas e sedutoras, justamente para se evitar o contágio com o escárnio
capitalista. Toque de recolher geral! Rapidamente todos os sacos-de-risada
foram confiscados das lojas de brinquedo, deixando milhares de crianças
chupando o dedo. E por falar nessa fase etária nefanda, comumente associada à
troça e zombaria, foi designada a cada família uma máscara de ferro para ser
acoplada ao rosto juvenil, de modo a evitar qualquer sinal físico de achincalhe
sardônico que viesse a atrapalhar a árdua batalha do partidão. Mais tarde
toda essa classe infantilóide iria amadurecer, agradecendo aos seus parentes
obtusos a chance de ocupar cargos burocráticos no funcionalismo público da
máquina estatal. Quem não gostaria de virar um funcionário público e carimbar
despachos do grande pai até o fim dos seus dias? Foi a partir dessa experiência
incrível que Kafka homenageou o progresso humano ao psicografar sua obra-prima
‘O Processo’. Buuuurp. Enquanto o general Hilário-Rabuja assistia pela
televisão a prova inconteste de obediência dos norte-coreanos ao seu líder
recém morto, mestre Lin-Kiu-Ping-Pong, aqui, nos trópicos do ocidente, o
exército da chanchada-careta decretava a lei do bullying mental, convocando a
todos para marchar na Paulista em homenagem ao enorme progresso do cabresto do
intelecto. O povo unido, jamais será vencido!
quarta-feira, 13 de junho de 2012
O sacerdote picareta...
O andarilho a que todos chamavam de o novo Buda resolveu
quebrar o silêncio e se dirigir ao povo que o seguia havia séculos. Até então
nunca tinha aberto a boca para dizer nada. Ninguém conhecia a sua voz. Subiu
numa pedra para que ficasse num plano mais alto e disse as seguintes palavras a
sua multidão de fiéis apaixonados: ‘Parem de me seguir! Não faço milagres! Tenham
a coragem de conviver com suas próprias misérias e me deixem em paz com as
minhas’. E se calou para nunca mais falar de novo. Depois do breve e
surpreendente pronunciamento, o andarilho caiu numa deslumbrante gargalhada que
o fez rolar ao chão. Divertia-se como nunca. Foi tomado como louco. Todos o
abandonaram. Depois de não sei quanto tempo experimentava novamente a sensação
de ficar sozinho. ‘Que benção’, pensou ele! Um profeta verdadeiro não deve rir.
A vida é por demais séria e perigosa para se abrir espaço a interlúdios de
loucura. Nesse instante percebeu o quanto tinha se tornado um picareta. E se
salvou.
terça-feira, 12 de junho de 2012
Os Anões Ultramarinos da ONU no Brasil...
Quando a comitiva de anões da ONU – Organização dos Nanicos
Ultramarinos – aportou na baía de Guanabara, já era tarde demais. Os ursos
polares já tinham dominado as dependências do Piscinão de Ramos e almoçado
todos os funkeiros que por lá rebolavam. Na falta de focas albinas no cardápio,
foram de tchutchucas e tchuchucos. Embora um pouco salgada demais, a carne
mostrava-se tenra e macia. O único inconveniente, segundo os próprios
consumidores, estava na fase da digestão, constantemente interrompida por um desconforto
abdominal que chamavam de pancadão-do-tigrão. O aquecimento global havia
chegado ao seu limite máximo, de forma que já não era mais possível encontrar
em parte alguma nem mesmo um par de pedrinhas de gelo pra mergulhar na
caipirinha. O êxodo polar se deu de maneira bastante comovente, com toda a
população restante de ursos, focas e raposas cantando em coro o ‘adeus amor eu
vou partir’ numa jangada próxima a costa do Canadá. O evento foi transmitido ao
vivo pela Globo, com trilha sonora da Celine Dion. A verdade é que a
repercussão global foi tamanha, criando-se inclusive um programa humanitário
batizado de ‘Foca Esperança’ para arrecadar fundos, que alguns
náufragos-da-geladeira acabaram sendo adotados por uma comunidade de fazendeiros
do Texas, o que exigiu a imediata tosa dos casacões de pele. Mais tarde se
soube que o comércio de lã para o fabrico de cachecóis havia ultrapassado a
famosa indústria agropecuária do local, tornando o Texas o maior exportador de
vestimentas para inverno do mundo inteiro. Quem nunca viu o outdoor mostrando o
Bush tremendo de frio, com a cabeça enfiada num baita gorro de pom-pom rosa de
pelo de urso? Os órfãos do ártico que permaneceram no Texas acabaram
constituindo família e se acostumando com a nudez, inaugurando dali a pouco
tempo a primeira praia nudista para ex-ursos polares do planeta. Grande parte
do contingente de focas preferiu migrar para a Finlândia. Os vikings prometeram
receber as novas inquilinas com um belo par de chifres na cabeça. Quem não
gostou nada disso foram os alces canadenses, que tiveram de permanecer onde
sempre estiveram, ruminando a mesma grama verde de sempre. A relação entre os
Vikings e as focas deu tão certo que hoje é comum fazer um sinal de chifres na
cabeça quando se pede para alguém focar direito naquilo que está fazendo. E
quanto ao Brasil? O destino tupiniquim está envolto em uma série de mistérios.
Reza a lenda que um agente de turismo corrupto convenceu os sem-teto-do-frio de
que o Brasil seria a terra do futuro, prometendo que em breve o país
desenvolveria uma economia fortíssima capaz de construir geradores potentes que
fariam nevar em cada canto da nação tropical (só deu certo da serra
catarinense). Somado a isso o fato de que o Brasil estava confirmado como a
próxima sede dos jogos de inverno, os ursos-polares deliberaram entre si,
chegando à conclusão de que valia arriscar o passaporte. Se a Bahia não fosso
tudo aquilo, ao menos dava para treinar patinação no lago da Pampulha e
representar o novo lar com brio na competição que se avizinhava. As raposas
gostaram tanto da ideia que formaram uma excursão só delas para construir uma
nova cidade no planalto tupiniquim. Batizada de Brasília, o local hoje abriga
um zoológico gigantesco de espécies raras de homo-sapiens, todos vestidos de
terno e gravata, cujo hábito mais impressionante é o de falar, falar e falar e
não se chegar à conclusão alguma. Pior destino tiveram os pingüins imperadores
da Antártida. Depois do desgelo do seu território, foram sumariamente
escravizados por uma companhia de cerveja, sendo só dois deles aproveitados
para servir de propaganda no rótulo da bebida. O que ocorreu com o restante é
demasiadamente triste, um verdadeiro holocausto pinguinal, sob as ordens de um
general maluco que não via outra solução para o planeta a não ser preservar a
pureza genética dos gafanhotos das Ilhas Maurício. Enfim, quando a comitiva de
anões da ONU – Organização dos Nanicos Ultramarinos – aportou na baía de
Guanabara, a coisa toda já tinha ido toda por água abaixo... só restando o
Redentor em cima do monte, cujos braços abertos serviam de bóia salva-vidas
para os poucos micos ainda vivos...
segunda-feira, 11 de junho de 2012
O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?
Muito se especulou, mas nada de concreto foi registrado nos
anais do pequeno vilarejo de Vâmo-Aí a respeito do misterioso desaparecimento
de Guilhermino-Toca. O que se sabe ao certo é que o sumiço durou somente um
dia. Vinte e quatro horas de silêncio absoluto de um dos mais respeitáveis
filhos-de-Deus que a humanidade já tivera notícia. E sobre isso não há
documento na face da terra capaz de provar o contrário. De Bangladesh ao
Macapá, de Mossoró a Chernobil, não havia quem não gostasse de Guilhermino-Toca.
Se os motivos de tal evaporação sumária ainda permanecem escusos, claro como o
raio de sol era o conjunto das qualidades morais pertencentes a
Guilhermino-Toca. Embora nutrisse certo rancor a alguns poucos invejosos – um
pote de mel aberto sempre atrai vespas interesseiras -, nunca se soube de
alguém que formalmente desafiasse o rapaz para qualquer tipo de duelo que
fosse. Mesmo assim, sumiu! Escafedeu-se! Tomou banho com pó de pirilampo e...
PUF! O sinal de que algo estava errado acendeu logo cedo. Quando
Guilhermino-Toca não compareceu à padaria em que costumava tomar café da manhã
religiosamente no horário das seis horas, Dona Eustáquia-dos-Odores
imediatamente sentiu falta daquele ‘bom dia, cara colega!’ que só Guilhermino-Toca
ousava lhe presentear. Essa, aliás, era uma das mais benquistas benesses do
rapaz: não conseguia evitar ninguém. Ainda que amplamente divulgado, o poder
apocalíptico do bafo podre da senhora dos-Odores estava longe de representar
barreira intransponível à cortesia de Guilhermino-Toca, levando-o a arriscar
corajosamente a própria vida ao se colocar no alvo de mira de uma iminente
rajada de alho vaporizado da velha gorda. O que dizer então da decepção do cego
Vadislau-Aonde quando soube que o braço que o conduzia ao outro lado da rua não
era o de Guilhermino-Toca? Justo este pobre ceguinho cujo principal motivo de
ânimo na vida era ser guiado pelo nosso herói! Para não ser pego desprevenido e
correr o risco de perder a carona, Vadislau-Aonde calculava exatamente o tempo
de sair de casa em função do itinerário do nosso herói, que há muito havia
decorado, na sagrada esperança de alcançá-lo no instante preciso da travessia.
Mal sabia que tal esforço era desnecessário. Guilhermino-Toca era tão
prestativo e afeito aos serviços humanitários que era bem capaz dele próprio
alterar a sua rotina para esperar o pobre Vadislau-Aonde naquela famosa esquina,
oferecendo sem qualquer demonstração de suplício aquele bendito e idolatrado
braço direito. Triste mesmo foi presenciar o trote capenga da oitava seção de
maratonistas do clube de veraneio de Vâmo-Aí, cujo principal atleta era, claro,
Guilhermino-Toca. Ninguém no pequeno vilarejo tinha o físico tão privilegiado
quanto o de Guilhermino-Toca. Por onde quer que desfilasse o seu conjunto de
músculos torneados, homens e mulheres paravam o que estavam fazendo para
admirar com júbilo as proporções perfeitas daquele Adônis, ao mesmo tempo em
que apontavam o exemplo de saúde aos seus pequenos filhos e apadrinhados. Não
foram poucas as medalhas olímpicas que Guilhermino-Toca trouxe para serem
beijadas pelos seus orgulhosos conterrâneos. Houve até quem especulasse que a
seleção americana de atletismo estava interessada em investir caminhões de
dólares para levar Guilhermino-Toca à América. Lágrimas escorreram pelos olhos
dos habitantes de Vâmo-Aí quando em resposta Guilhermino-Toca cantou de cor e à
capela o hino do vilarejo, fazendo questão de colocar a mão direita no coração
ao mesmo tempo em que lançava um olhar redentor aos céus. Depois disso, não se
ouviu um único boato de que o nosso herói quisesse debandar para fora das
fronteiras do solo sagrado que o viu nascer. Após o episódio, um busto de
bronze de Guilhermino-Toca foi erguido ao lado do coreto da praça principal,
virando imediatamente ponto de peregrinação dos mais jovens aos mais velhos,
além do seu cocuruto metálico inaugurar um excelente posto de descanso
temporário para a população de pombas migratórias. A verdade é que Vâmo-Aí não
sabia para onde ir. Como um trem que perde a sua locomotiva, Guilhermino-Toca
com seu chá de sumiço deixava à deriva todo um contingente de milhares de
almas. É bem verdade que exageramos. Vâmo-Aí não chegava a somar trezentos
habitantes, e isso incluindo os vira-latas, que não aceitavam de forma alguma
ficar de fora do censo. Mas o eufemismo é plenamente justificável, pois a crise
gerada pelo nosso personagem ausente ganhava cada vez mais contornos
hiperbólicos. A população começava a se agitar. Alguma coisa deveria ser feita
antes que houvesse uma nova queda da Bastilha! O delegado tomou as rédeas. A
delegacia de polícia resolveu organizar uma frente de buscas atrás de
Guilhermino-Toca. Os jornais gostaram do exemplo e começaram a imprimir edições
extras em caráter de urgência, estampando a cara de Guilhermino-Toca na página
principal. Sob a foto lia-se: ‘O que terá acontecido a Guilhermino-Toca?’. As
recompensas eram altíssimas. Mas nada de Guilhermino-Toca. Enfim. E agora? Não
se desespere aí desse lado, caro leitor! A sua posição é muito mais confortável
que a minha! Como criador dessa invenção que nunca se deu em tempo e lugar
algum, começo também a querer sumir com a presente dificuldade de se encontrar
um fim a tudo isso. A fábula começa a ficar longa e é preciso encontrar, senão
Guilhermino-Toca, um desfecho no mínimo aceitável. E já que detenho esse miolo
criativo que dá substância a toda essa sopa de enlevos, faço uso desse poder
para retornar no tempo e encontrar Guilhermino-Toca bem debaixo do seu
cobertor, o único lugar que resolveram não vasculhar. No aconchego da sua
preguiça, entendeu que recompensa maior não há para aquele que resolve sumir
espontaneamente do altar coletivo. E lá ficou. Orgulhoso como nunca. Para nunca
mais sair. Fim! Ufa...
domingo, 10 de junho de 2012
Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas...
Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas. No início por
distração, depois por hábito. Desde a sua tenra infância, Alcebíades-Sombra
gostava de arrastar um guarda-chuva atrás de si. Ainda que o sol estivesse
pleno no firmamento, Alcebíades-Sombra não economizava escusas que justificassem sua
extrema necessidade de sair de casa junto ao seu fiel companheiro de luta. Como
um Dom Quixote das intempéries chuvosas, o menino não ousava pôr-se em movimento
sem a companhia do seu Sancho Pança de cabo e lona. Se o prólogo anunciava
aventuras inéditas, o epílogo redigia sempre as mesmas linhas: o retorno do
garoto, sempre sozinho, sem o seu guarda-chuva a tiracolo. Quando chovia, as
coisas não se alteravam. Talvez imaginássemos que a chuva pudesse tornar tudo
mais fácil para Alcebíades-Sombra. Uma vez útil, o objeto não sairia da mão do
seu dono, evitando lapsos de distração que desembocassem na perda sumária do
dito cujo. Ledo engano. Em dias de tormenta, era comum ver Alcebíades Sombra
regressar ensopado ao local de onde partira. Sua mãe o advertia para nunca mais
incorrer em tal tipo de esquecimento, recorrendo muitas vezes a castigos
exemplares. Mas parece que o menino nunca se emendava. Na adolescência,
enquanto as espinhas apareciam, os guarda-chuvas continuavam a sumir. Vejamos
agora como se comportava Alcebíades-Sombra na sua idade madura. Fase em que os
guarda-chuvas deixam de ser extravagantes e animados para ganhar contornos
sóbrios e bem comportados. Já com barba feita no rosto, onde quer que
Alcebíades-Sombra desejasse ir, continuava a levar consigo seu guarda-chuva.
Dessa vez preferia modelos clássicos, com acionamento automático da aba, cuja
estrutura trançada por arames de alumínio formava desenhos geométricos
admiráveis. Mas quem disse que glamour altera caráter? A coisa toda tinha perdido
os ares de aventura para ingressar no perigoso terreno das necessidades do
hábito. A rotina era sempre a mesma. Saia de casa bem de manhãzinha para
cumprir com suas obrigações e mais tarde voltava já desincumbido do seu
companheiro de partida. Retornava contente ao seu lar, com a segurança de ter
desempenhado um bom papel como cidadão correto que era, mas bastava bater a
porta atrás de si para o sorriso lhe escapar. O semblante de Alcebíades-Sombra
de repente tornava-se lívido, de um tom sinistro tal qual uma máscara mortuária
dos filmes de ficção. Percebia, então, que algo estava errado, que voltara mais
leve do que quando partiu. Uma triste sensação de ausência acompanhava o
instante em que Alcebíades-Sombra tomava consciência do seu ato criminoso.
Repassava mentalmente todos os locais em que estivera com a esperança de no dia
seguinte recuperar o que havia perdido. Sempre em vão. Por algum mistério ainda
não revelado, nunca se encontravam os guarda-chuvas perdidos por Alcebíades-Sombra.
As noites eram duras para Alcebíades-Sombra. Raramente pegava no sono, e quando
conseguia fechar os olhos, terríveis pesadelos o acometiam. O enredo nunca
mudava: um guarda-chuva gigante fechava sobre sua cabeça, sufocando-o até a
morte. Mas o luto não durava muito. Alcebíades-Sombra encontrava razão para
velar sua dor somente durante o período em que a lua permanecia protagonista do
céu. Quando amanhecia, ainda um pouco cambaleante da ressaca moral da véspera, deparava-se
com um novo guarda-chuva recostado à porta de saída. O olhar de
Alcebíades-Sombra brilhava como se houvesse atravessado o vidro da maternidade
para ver seu filho encontrar o mundo pela primeira vez. Como não tinha filhos,
o novo guarda-chuva fazia o papel de restaurador dos laços afetivos, antes
combalidos. Mas a alegria não durava. O final do dia era sempre triste para
Alcebíades-Sombra. Alcebíades-Sombra perdia guarda-chuvas e isso o fazia
sofrer. Algumas táticas foram testadas para tentar brecar o ciclo de tragédias
anunciadas. Primeiramente, Alcebíades-Sombra detectou o seu vício. A despeito
da vergonha pública onde a zombaria alheia pudesse vir a significar novas
feridas, Alcebíades-Sombra foi forte o suficiente para encarar de frente o seu
problema. Procurou um médico especialista em esquecimentos. O doutor receitou
alguns procedimentos que Alcebíades-Sombra deveria seguir com afinco. E assim
foi feito. Tirou fotos do guarda-chuva atual, e como continuava a perdê-los,
formou um mural enorme na parede da sala que rapidamente ganhou ares de altar.
Depois começou a batizar o guarda-chuva com nome próprio, e como continuava a
perdê-los, fazia orações diárias aos seus entes queridos que já não mais
estavam junto de seu pai amado. Enfim, todos os recursos foram esgotados e nada
funcionou. Até que em certo dia, Alcebíades-Sombra teve um mal súbito e morreu.
No seu enterro, São Pedro regou a cerimônia com uma chuva de lavar a alma.
Alcebíades-Sombra, lá onde estava, conseguia ver uma infinidade de amigos e
parentes que já não lembrava mais que tinha. Mas isso não foi o que mais o
emocionou. Do seu ângulo de visão, enxergava claramente um batalhão de rodelas
pretas, todas abertas e firmes, um verdadeiro exército de guarda-chuvas atentos
à sua lembrança. Ufa! Até que enfim Alcebíades-Sombra pôde reencontrar aquilo
que durante toda sua vida andou perdendo. E foi-se embora feliz.
sábado, 9 de junho de 2012
Quando Pirituba recebe a rainha...
Lancei um olhar através da janela e vi lá fora uma massa
branca dominando a paisagem. Fog em Pirituba? Não sei. Não moro em Pirituba.
Nem sei onde fica. Mas cá onde estou, vizinho de Pirituba e a milhas do Big
Ben, fog se chama neblina. Era neblina. Mas lembrou-me a fog do além mar.
Resolvi ligar para a rainha. Fazia tempo que não batia um papo com a realeza.
Não pude comparecer ao jubileu dos 60 anos de reinado da Eliza. Compromissos
tropicais me prenderam abaixo do equador. Essa era uma oportunidade de me
desculpar e perguntar como andavam as coisas no castelo de Buckingham. A última
vez que lá estive a grama do jardim estava alta demais, tão alta que
dificultava as nossas partidas de cricket. Por isso que nunca levei a sério as
gozações do jovem Will em razão das lavadas que tomei. Só consigo colocar meu
time em campo com a grama rala. Mato alto é bom para a caça a raposa. Lembro-me
perfeitamente do Watson, o beagle mais talentoso do mundo para esse tipo de
esporte. Havia disputas homéricas para ver quem ganhava o direito de incluir o
velho Watson na matilha. Quem contasse com o Watson na equipe já saia na
frente. O faro do bicho surpreendia a todos. Até o Duque da Cornualha, que
estampava um narigão de peixe-boi, se rendia ao talento insuperável do focinho
do velho Watson. Por onde andará agora o velho Watson? Na sua tenra infância
canina, quando ainda nem sonhava em ganhar o título de Dog-of-Wales, dormitava
tranquilamente aos pés da Rainha-Mãe. Oh, Mother-Queen! Que Deus a tenha.
Quantas e quantas vezes não rodei o gramophone para ninar a Rainha-Mãe na sua
alcova? Sua ópera predileta era a Norma de Bellini. Até hoje quando ouço a
Maria Callas interpretando a casta diva me recordo do ronco suave da
Rainha-Mãe. Que Deus a tenha. Que Deus os tenha, melhor dizendo. A julgar pelo
tempo que já transcorreu, Watson já deve estar novamente fungando a sola do pé
da Rainha-Mãe. Chulé de raposa velha, era a piada que fazíamos. Humor inglês
pode. Humor inglês não é que nem o nosso, politicamente-correto. Humor inglês é
polite, só polite. Se não entende inglês, caro leitor, apanhe um dicionário.
The book is on the table. God save the Queen! Alô? Your highness? Is that you?
Não era. Era o mordomo. A rainha estava fazendo sua toalete. Rainha não vai ao
banheiro. Rainha faz a sua toalete. Aguardei na linha durante uma breve
eternidade que não sei exatamente precisar o quanto durou. Enquanto segurava o
gancho do telefone, a paisagem lá fora se tornava surpreendentemente cada vez
mais britânica. Pirituba virou Londres? Não sei, nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Mas os meus ouvidos não me deixavam enganar. O barulho da buzina
era inconfundível. E vinha lá de fora. Alguma embarcação acenava sua passagem
por debaixo da london’s bridge. A mesma ponte que havia queimado por completo
no grande incêndio de 1666. Deu uma vontade louca de prevenir a rainha sobre o perigo do
uso freqüente da lareira no quarto de dormir. É hábito da Eliza acender o fogo
antes de pegar no sono. O ruído das lenhas estalando é como o arauto de Morpheus,
um verdadeiro bálsamo para os seus sonhos. Como sei disso? Elementar meu caro
Watson (in memoriam). Sei disso porque era eu mesmo quem se prontificava a
adentrar nos aposentos da realeza para animar as brasas. Sentia-me o servo mais
sortudo do mundo. Nem a guarda real tinha a oportunidade de ver a rainha de
camisola. Camisola e coroa. Sim, porque Eliza nunca abria mão da coroa. Não era
só no trono. Quer dizer, até no trono a coroa era adereço obrigatório. Imagine
Eliza fazendo sua toalete de coroa! Ah quantas saudades da minha grande e
querida rainha! Hello? Queen
my dear? Is that you? Não. Não era. Era o mordomo pedindo-me a little
more paciência. A your highness estava tendo um pequeno inconveniente com o
desjejum. Parece que a ameixa negra da Guatemala, uma das iguarias obrigatórias
em Buckingham, havia passado da data de validade. Agora cabia ao trono real
despachar a notícia do acontecido. Não me importava em esperar. Continuava com
o gancho do telefone na mão, ansioso e rígido como uma estátua. Quando se trata
de esperar pela rainha, tudo vale à pena. Até virar estátua de cera no museu da
Madame Tussauds. E foi assim, meio encerado e com o gancho na mão, que ouvi a
trupe de atores cantando logo abaixo da minha janela. Era a companhia de
Shakespeare que se dirigia ao The Globe para a estreia de Hamlet! Pirituba
virou a Dinamarca? Hamlet em Pirituba? Não sei. Nunca estive em Pirituba. Nem
sei onde fica. Quiçá Hamlet! Mas eu não estava sonhando, não! Haveria em breve
um ‘Ser ou não ser eis a questão’. Deu uma vontade louca de convidar a rainha
para assistir ao espetáculo. Pensando bem, talvez não fosse conveniente. Como a
Queen iria receber a cena dos coveiros? Quando se chega à determinada idade é
melhor evitar o uso das ironias. Pode ofender. Ou pior, insinuar que em breve
tudo virará pó, até a constituição firme e sólida da realeza. E isso seria
inadmissível. Imagine a rainha voltando como fantasma no ato seguinte? Segundo
o enredo, Charles teria de matar o tio. Mas sabe-se lá se há um tio na sucessão
da coroa! A coisa enrolaria de tal forma que correria o risco de virar trama de
Nelson Rodrigues. Longe de mim acusar a realeza de bonitinha, mas ordinária! Eu
iria para o calabouço bater um papo com a Mary Stuart! Hello? Your highness?
Não era. Era o mordomo. Teria de esperar mais um tempinho. Esperei. Ainda
espero. Para falar com a rainha espero até virar uma caveira carcomida por
vermes...
sexta-feira, 8 de junho de 2012
Nestor-Mola, o jogador de ioiô!
Nestor-Mola, o famoso jogador de ioiô, estava prestes a
entrar no palco do Teatro Municipal para a tão esperada apresentação da noite.
Seria uma única apresentação, com os números já descritos no programa. Nestor-Mola
iria começar com uma sequência de rodopios e loopings para depois emendar no
grosso do espetáculo, que consistia na execução de partituras acrobáticas que
lembravam as coreografias dos aviões da esquadrilha da fumaça. Tudo não levaria
mais do que uma hora. A razão da curta duração é plenamente justificável.
Embora o show fosse aguardado por mais de uma década – Nestor-Mola é um artista
extremamente requisitado, cumprindo hoje compromissos agendados há anos atrás
-, a qualidade da exibição é de tal forma intensa que provoca o retesamento de
todos os tendões da mão do atleta, reverberando espasmos musculares em todo o
restante do seu corpo, da cabeça aos pés. Mas sobre isso ninguém comenta. Ou,
se dizem algo, é sempre na surdina, para evitar constrangimentos. A verdade é
que alguns elementos invejosos afirmam que a sensação do show é antes a
esquisitice do personagem que as mirabolices executadas com a pequena esfera de
madeira presa ao barbante. Curiosamente, estes mesmos invejosos são os que
ocupam as primeiras filas da plateia, ansiosos para ver o contorcionismo dos
gestos de Nestor-Mola, não prestando atenção alguma ao talento da sua arte.
Enfim, seria uma hora de atividades intensas que prometia espantar a todos os
presentes, invejosos ou não. Naquela semana a cidade parou para prestar reverência
à chegada do grande astro do ioiô. Os programas de televisão dedicaram mesas
redondas intermináveis com a participação de especialistas no tema. Médicos e
fisiologistas de todo o país viajaram distâncias homéricas para debater os
impactos dos movimentos de Nestor-Mola na estrutura óssea da mão direita – o
membro esquerdo não sofria danos importantes que merecessem maior atenção -,
bem como o papel decisivo dos tendões na execução das acrobacias mais
complicadas. Slides, fotos e diversos raios-X foram mostrados em caráter de
prova para justificar cada argumento, bem como demonstrar as deformações
inevitáveis que um leigo sofreria caso quisesse imitar o virtuosismo do nosso
artista em evidência. Até mesmo chegou-se a discutir a necessidade de deslocar
uma ambulância para ficar de prontidão no dia do evento, caso Nestor-Mola
necessitasse de massagens urgentes após o feito acrobático. Tal defesa gerou
certa tensão por conta de alguns defensores do povo terem questionado o
privilégio de Nestor-Mola obter a seu dispor um veículo médico, enquanto todo o
resto da audiência ficaria desguarnecida. Os ânimos voltaram ao normal quando
se resolveu instalar bases médicas nas redondezas do teatro. Quem desmaiasse ou
tivesse qualquer outra indisposição ante a emoção da apresentação não teria com
que se preocupar. Empresários também fizeram sua participação nas discussões ao
problematizar a supervalorização do passe de alguns artistas de evidente
importância menor em relação ao extraordinário poder de marketing do mestre do ioiô.
Camisetas, bonés, botons e uma infinidade de souvenires foram estampados com a
cara de Nestor-Mola, fazendo a felicidade de toda uma trupe de vendedores
ambulantes que se acotovelavam nas cercanias do local do show. Os agentes
sociais também marcaram presença nos debates preliminares. Diversos profissionais
da educação pública discursaram sobre a importância de Nestor-Mola na
comunidade, bem como a repercussão que tal iniciativa iria gerar para a
formação das gerações vindouras. Uma campanha de inclusão dos menos favorecidos
foi organizada na tentativa de levar pessoalmente Nestor-Mola às regiões mais
carentes da cidade. Até o final do dia não se sabia se Nestor-Mola teria como
aceitar a proposta, ainda que seus assessores dissessem que o artista tinha
muito gosto em tomar parte em eventos que promovessem a inclusão, mostrando
evidente sensibilidade às causas sociais. Alguns até ventilaram a hipótese de
convidar Nestor-Mola a ingressar no órgão mundial de defesa das crianças órfãs
do Azerbaijão. Mas a ideia não teve grande número de adeptos e acabou
murchando. Faixas e cartazes foram espalhados pelos muros e esquinas,
convidando a todos para o grande dia. Até mesmo os políticos fizeram um minuto
de silêncio durante as sessões parlamentares para homenagear o evento que em
breve tomaria lugar no Teatro Municipal. Quando Nestor-Mola subiu ao palco
naquela noite, o burburinho que recheava o teatro com a mais variada gama de
zum-zum-zuns foi imediatamente silenciado. A pose plástica do artista era de
fazer qualquer um abrir a boca de espanto. Nestor-Mola se encaminhava ao centro
do palco como um príncipe que fora promovido a rei e agora se dirigia ao trono
para receber a coroa. Seu ioiô de pau-brasil reluzia ao reflexo dos holofotes.
A cena era das mais impactantes. A dignidade moral desse artista era de tal
magnitude que não havia como deixar de respeitá-lo. Há anos atrás, Nestor-Mola,
num erro de distração, atingira o próprio olho esquerdo com o seu ioiô num de
seus treinos diários. Desde então um olho de vidro fora colocado no lugar do
natural. Também não era segredo que Nestor-Mola era surdo de ambos os ouvidos.
Isso sem contar que mancava de uma das pernas em razão de uma má formação
infantil. Como um maestro que prepara sua orquestra para o acorde inicial, Nestor-Mola
então levantou seu ioiô e deu início ao espetáculo. Ao final, todos voltaram
para casa com uma única certeza: a de terem sido testemunhas de um do maiores
espetáculos da terra.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
Quer ser professor? Tenha um bigode!
Quer ser professor? Dica valiosa: tenha um bigode. A relação
é direta. O bom professor deve necessariamente apresentar um bigodão logo
abaixo do nariz. Bigode no andar debaixo do cheirador? Não me diga? Afinal, em
qual outro recanto desse nosso sítio cutâneo poderia haver abrigo para o senhor
bigode? Caso tenha pensado em alguma pornografia o problema é todo seu, caro
leitor. Eu estou preocupado com o espiritual. O corpo não vale o investimento,
a terra há de comer – já pensou o tamanho do banquete que os vermes hão de
fazer quando chegar o dia de jantar o loló da Rita Cadilac? Por isso que eu
faço questão de afinar regularmente o meu esqueleto. Não dou alegria pra
ninguém em vida, vou agora virar motivo de homenagem no túmulo? Se bem que todo
morto vira santo. Todo morto é aplaudido de pé. Até verme vai à missa de sétimo
dia com o terço na mão. E basta um canalha morrer pro papa abrir um processo de
beatificação. Se o Cachoeira empacota, o pontífice o transforma em chafariz de
água benta no instante seguinte! E a fonte-santa vira ponto de peregrinação,
com milhares de fieis andando em volta aos gritos de ‘Aleluia ó H²O do
Olimpo!’. É por isso que a indústria dos santos anda de vento em popa mesmo em
tempos de crise. Presunto não liga pra crise alguma. Presunto continua saindo
que é uma beleza. E todo presunto vira santo. Sorte dos porcos que devem ter um
chiqueiro só deles no céu. Mas chega de humor-de-presunto! Brás Cubas é infinitamente
mais talentoso nesse quesito do que esse humilde servo das letras-pagãs que vos
fala. Como ia dizendo, professor que é professor estampa um bigode no focinho.
O bigode é um atributo corporal, correto, mas é ao mesmo tempo a ponte para o
espírito. O bigode é a carta de alforria do sujeito preso à ignorância. O
bigode é o elixir filosófico, a passagem secreta entre o terreno e o
supra-sensível, o cartão vip que dá acesso ao camarote do Oráculo de Delfos.
Não há por onde fugir, caro candidato ao magistério, se quiser ser professor,
embigode-se! Mas atenção! Cuidado com o cavanhaque! O cavanhaque poderá levá-lo
a outra profissão num estalo de dedos. Motoboys tem cavanhaques. E nenhum
professor vai querer associar sua nobre causa com o delivery do Habibs. O
professor é o arauto do saber, não o mensageiro da esfiha. Se bem que dependendo
do professor qualquer mesa de bar chinfrim vira estágio em Harvard. Nesse caso,
quando o estômago vence, quase sempre a culpa é do mestre, que inadvertidamente
se esqueceu de estampar o bendito do bigode. O bigode é a vestimenta moral, o
anel de Nibelungo do saber, a pedra filosofal dos boletins acadêmicos. A
gilete, por sua vez, é criptonita do corpo docente, a encruzilhada da reputação
abstrata, o juízo final da emancipação do espírito. Não há nada pior do que um
professor ver a sua reputação ser colocada em xeque. Para evitar tal
inconveniente, não hesite em deixar crescer sua palhoça acima do lábio
superior. Não é bobagem o que digo, caro leitor. Um homem de cara lavada não é
respeitado pelo que sabe, pode reparar! Pode até ser o Einstein, mas se tiver a
cara limpa, fracasso total, não imprime respeito algum. Einstein, aliás, era um
emérito representante da bigodície científica. Tire-lhe o bigode e o E=MC² vira
domínio público. Insisto. Com o bigode tudo se altera. Até uma
anta-onomatopaica ganha mais respeito quando se embigoda. Entre numa sala de
aula com um bigode e imediatamente conseguirá discorrer sobre os mais variados
temas, desde o imperativo categórico de Kant, passando sobre os perigos e
vantagens do uso sistemático do acelerador de partículas da física nuclear e
até sobre qualquer outra coisa que faria um ganhador do Nobel render-lhe
reverências. Eu tenho bigode. Não sou bobo nem nada! Agora, como ficam as
mulheres nessa história de pelos faciais? Elementar minha cara mulher barbada
do circo. Aquelas que não tiverem um buço para valorizar devem recorrer aos
bigodes postiços. A 25 de Março é mundialmente conhecida pela venda de bigodes
made-in-Taiwan. São resistentes, macios, duráveis e ainda contam com a vantagem
de poderem ser lavados e estendidos ao sol para secar – prática que deixaria
marcas vermelhonas na cara dos homens que resolvessem aderir ao hábito. Outra
coisa interessantíssima é identificar o que ocorre a uma plateia quando esta se
defronta com um polpudo bigode. Um bigode é capaz de silenciar uma feira. Se
Moisés tivesse um bigode não precisaria recorrer ao Salvador para abrir
passagem pelo Mar Vermelho. O bigode daria conta desse obséquio sem maiores
esforços. É incrível a capacidade persuasiva de um bigode. Hitler, Stalin,
Osama, Sadam e todos os malucos que já passaram pela história do nosso planeta
tinham um bigode. E isso por uma única razão: o bigode convence. Ninguém duvida
de um bigode. Pode ser o lunático que for, se carregar um bigode estará
absolvido. Quando me lembro das inúmeras tentativas de colocar por terra esses
carrascos-malucos da humanidade, constato com tristeza que ninguém imaginou a
solução mais óbvia para o sucesso na empreitada: uma navalha. Não para cortar o
pescoço, mas para aparar o bigode. O barbeiro seria o agente secreto ideal da
resistência. Mas ninguém se dá conta de perceber o óbvio. Cuidado! Não digo que
o professor deva ser um carrasco. Mas uma vez com um bigode no rosto é bom que
ele se dê conta do enorme poder de artilharia da sua taturana-narigal. Recordo
de um professor que tive. Ele era altamente equivocado, um legítimo paspalho
dentro de um terno que saia por aí vendendo fórmulas vazias de sucesso aos
alunos. Um frustrado na vida que fazia da academia o seu consultório de
psiquiatria. Pois então, não havia um desgraçado que ousasse encostar o cara na
parede e exigir a sua demissão. Tudo por conta de um bigode. O bigode desse
professor era um escudo inviolável que fazia render aplausos, nunca vaias. Mas
eu sou diferente, caro leitor. Cuido do meu bigodão por uma questão estética.
Não sou picareta. Até que me provem o contrário, não sou picareta! Mas só lhe
peço uma coisa. Não venha para cima de mim com uma espuma de barbear! Prefiro
um embate filosófico de ideias que me derrubem a ter de abrir mão do meu bigode.
Mas isso dificilmente acontecerá. Afinal, o portador de um bigode sempre vence!
Saudações bigodais!
quarta-feira, 6 de junho de 2012
Há um pilantra dentro de nós...
Sou um pilantra. Como prova irrefutável dessa minha
qualidade, entrego ao seu conhecimento, caro leitor, as minhas duas nobres
ocupações profissionais. Sou ator e professor. Justamente as duas maiores
cátedras PhD no exercício da pilantrice aguda. O primeiro finge que acredita
para produzir verdade naquilo que não existe. O segundo acredita que ensina o
que é impossível conhecer na esperança de que os outros entendam o que ele
próprio desconhece. Só sei que nada sei. Depois de Sócrates ninguém mais
deveria ter coragem de voltar do recreio para assistir a aula de química! E por
falar em química, até hoje não faço a menor ideia do que seja 1 mol! Você sabe
o que raios é 1 mol, caro leitor? Quem nunca passou noites em claro a queimar
miolos na esperança de entender a maldita fórmula do mol, para ao final da
prova continuar na mais profunda ignorância a respeito da utilidade metafísica
desse número maçônico? A maçonaria deve ter surgido ao redor desse mistério
transcendental. E de dentro da maçonaria apareceu a teoria de que o Ronaldinho
Gaúcho joga futebol. Outro mistério insolúvel que nos acompanha até os dias
atuais. Tenho a impressão de que o enigma da esfinge é exatamente esse: ‘Para
que raios serve um mol, reles mortal? Decifra-me ou devoro-te!’. Quem souber a
resposta desbanca o Rei Édipo no comando de Tebas ou então vira imediatamente
um Buda iluminado, desses que tomam chá verde no cume de algum morro do Tibete
na companhia do Dalai Lama. Antes disso, só fazendo muita aula de ioga para dar
conta de equilibrar tamanha carga de ignorância. Quem tenta remar na contramão
da ignorância recebe de imediato o diploma de bacharel da cafajestagem.
Cafajeste é diferente de pilantra. O cafajeste acredita no sucesso do seu
empreendimento. O pilantra constrói o edifício já com o dedo no botão da
demolição. No rumo da cafajestagem, ator e o professor andam no sentido
contrário. O ator e o professor exercitam a fraude, não o sucesso. Ser ou não
ser, eis a questão. Pois é. Sou uma fraude. Mas veja bem, minha fraude é um
atributo da minha capacidade de ler o mundo, não uma contingência do meu
caráter. Porque pilantragem de caráter não é motivo de orgulho algum.
Pilantragem de caráter é moeda comum. No cardápio diário, a pilantragem vem no
prato como arroz e feijão. Honestidade é outra coisa. Honestidade é corte
nobre. Honestidade é filé mignon. Nem todos são honestos, mas pilantras somos
todos, incluindo os poucos honestos. Ninguém nasce livre da pilantragem. É como
nascer sem esqueleto. Sem esqueleto não há possibilidade de vida humana.
Tirem-me o esqueleto e eu perco num estalo de dedos a capacidade de digitar
essas linhas profundamente sábias. Não faça essa cara de quem adoraria ver para
crer, caro leitor! Não conspire a favor da fuga repentina do meu fêmur e de
seus companheiros ossudos! Quem perderia mais com isso seria você. Você e o
mundo. Tudo ficaria mais cinza e mais árido, com menos poesia! Mas eu resisto!
Vá desossar o frango do seu almoço e me deixe em paz! Mas, como eu ia dizendo, os
alicerces são fundamentais. No nosso caso, a pilantragem é o que nos mantém
erguidos. O esqueleto moral. Se nos fosse possível safar dessa triste sina,
escolheríamos não abandonar esse resort chamado terra ao cabo de algumas poucas
temporadas. Quando a diária chega ao fim não há gerente que apareça para
escutar nossos clamorosos pedidos de prorrogação das férias. A vida é uma
gincana de pilantrices. A prova disso é que ela não dura. Nesse caso, uma pedra
é mais digna e honesta que você, caro leitor. A pedra resiste ao tempo, custe o
que custar. Você poderia refutar dizendo que a pedra não filosofa, por isso é
infinitamente menos merecedora da dignidade que carregamos. É verdade. Mas
filosofar a troco de quê, pode me dizer? Já vimos que a busca sagrada pela
resposta do santo-mol não nos leva a lugar algum. Alguma coisa de reconhecida
relevância foi descoberta desde que o homem deixou de arrastar sua mulher pelos
cabelos para dentro das cavernas? Não estou computando o Steve Jobs nessa
parada nem o seu olhar sedento para os mais recentes e notáveis inutensílios
tecnológicos. Um ipad ou uma máquina de xerox não aliviam em nada a pilantragem
da nossa condição. Ao contrário. Enchem-nos de novos desejos para em seguida
ceifá-los sem dó nem piedade. Quanto mais purpurina, maior a ressaca ao final da
festa. São por essas razões que um pilantra de ofício se dá bem. O pilantra de
ofício tem por princípio desconfiar daquilo que faz, compreendendo a
impossibilidade de ter sucesso numa vida fadada ao limbo do esquecimento.
Conhecer pressupõe fracassar. Não há outra medida possível senão essa. O
pilantra de ofício sabe que suas palavras são como pétalas lançadas ao vento.
Podem encantar durante um breve período, mas duram pouco no ar. Acabam
despencando ao chão para serem pisoteadas e amassadas pelo exército de
distraídos do qual todos nós fazemos parte. Palavras, palavras, palavras! Escrevo
toda essa ladainha e me dou conta de que estou remoendo sem perceber as crises
de consciência do jovem Hamlet. E essa crise é justamente aquela que faz parte
do ofício do ator – como dar conta de ser verdadeiro se a matéria prima da
construção do personagem parte sempre da mentira? Sabe qual é a raiz
etimológica da palavra ‘ator’, caro leitor? [Rimou]. Respondo: Ator =
Hipócrates = Hipócrita = Aquele que finge ser o que não é (tudo no dicionário,
confira!) Não é incrível? Para dar conta de uma verdade suprema, a da nossa
inconstância e efemeridade, temos que recorrer ao que não existe, a poesia como
ferramenta de algo que passa longe da comprovação científica. Enfim, fuja da
verdade para que alcance alguma resposta que lhe seja minimamente verossímil no
que se refere ao conteúdo concreto da vida. O pilantra é o único que se salva,
caro leitor! Sejais vós, leitores, também um bando de pilantras! Nessa aula de
filosofia de botequim, acho que acabei falando mais do ator e menos do
professor. Gostaria de dedicar mais linhas a essa nobre profissão. Mas deixo
para amanhã. Quinta feira é o dia do professor. Não percam a aula! E não terei
piedade com quem chegar atrasado! Tenham todos um bom dia. Dispensados!
terça-feira, 5 de junho de 2012
Chuva ácida no cocuruto do Cristo...
(Play) O Rio de Janeiro continua liiiiindo. Alô, alô
Terezinha... (Pause) Tchuru ru ru. Aquele abraço, caro leitor. Quem vos fala é
o jovem guerreiro (velho é a mãe!), aquele jovem que teve a brilhante e mal
gerida ideia de vos escrever algo uma vez ao dia. E só escrevo unicamente para
satisfazer vossa lacuna diária de poesia. Do contrário, desistiria já. Sou
altruísta! Preocupo-me com você. Se é para o bem geral de todos e felicidade
geral da nação, eu fico! Eu sou um poeta! Sirvo-te, pois então. Aquele abraço a
todos que me lêem. Não mando beijo porque beijo não tá na música. E também eu
não te conheço a ponto de sair beijando. Um abraço já está de muito bom
tamanho. Nada de chororô, sinta-se feliz. Afinal, também não saio abraçando
todo mundo, só abraço gente como você, que lê meu blog. E você não está
sozinho. Praticamente toda uma China comunista lê o meu blog. Sou o único
blogueiro autorizado pelas autoridades do Xing-Ling a desbravar as terras
virtuais do Mao Tsé-Tung, eu e o Marco Polo. A única exigência é que eu
continue a escrever em português. Aceitei! Não sou bobo nem nada. Mas chega de
peripécias onomatopaicas e vamos direto aos eufemismos metafóricos que recheiam
de conteúdo esse périplo intelectual. Ontem prometi uma homenagem ao Rio de
Janeiro, mas foram tantas emoções... aliás, está aberto o concurso de seleção de
terroristas para afundar com torpedos nucleares o cruzeiro do Roberto Carlos no
próximo verão. Para quem não for classificado na primeira lista, haverá uma
repescagem para garantir vaga no coral que entoará o ‘Jesus Cristo eu estou
aqui’ enquanto o Rei afunda com a embarcação. Pobre Celine Dion, perdeu o
trono. Vamos ao que importa. Havia reservado uma homenagem ao Rio de Janeiro
para ontem. Não deu certo. Me enrolei. E como hoje é terça e terça nunca é dia
de homenagens, permaneço com o tema e abandono a homenagem. Ao invés de
confetes e purpurinas, vou de chuva ácida! O Rio de Janeiro é um negócio que
nunca vai dar certo. Alguém duvida? Calma lá! Não falo dos cariocas! Os
cariocas são vítimas. Vítimas de um estigma maligno que envenena o solo
fluminense. Uia! Falei agora como um arauto de tragédia grega! Mas a tragédia
de hoje é em terra tupiniquim. Na verdade, não é a terra propriamente o local
onde o problema se encontra. Ao contrário. A encrenca galgou morro acima e foi
se instalar no topo da montanha. No topo desse nosso Olimpo-de-bananas
encontra-se o Cristo Redentor! É o Cristo Redentor, senhores, a figura que
empaca a vida dos habitantes da baía de Guanabara. Explico. Não é possível uma
cidade dar certo quando um respeitável sujeito de pedra-sabão se posta
dignamente no corcovado para lá de cima gritar com seu vozerio à La Cid Moreira
aos anõezinhos cá de baixo: ‘Liberô geral, meu povo!’ Sim, porque é exatamente
isso o que acontece quando o Divino abre os braços. Se Ele não abrisse os braços
o Rio de Janeiro estaria a salvo. Mas Ele abre. Um abraço da condenação. Uma
atitude altamente reprovável quando o alvo é a humanidade. E o que mais me
deixa indignado é ter eu, um pobre mortal, a obrigação de alertar o Criador do
seu retumbante equívoco! Será que Ele já se esqueceu do que diz o oitavo pecado
capital? Lembro-te, ó Senhor! O oitavo pecado capital é justamente esse:
‘jamais sejais condescendente com a pilantragem do próximo.’ E afinal não é
isso o que acontece? Basta um condenado cometer alguma infração para depois
olhar pra cima e se sentir absolvido pelo terno abraço do Cristo. É esse abraço
redentor que rebenta com a vida dos cariocas. A pilantragem é tão deslavada na
terra do Chacrinha que não há pudor algum em se expor publicamente as
vergonhas. Os pecados vestem tangas no Rio de Janeiro. Os vícios se enfiam no loló
tal qual shortinhos das popozudas do funk. E quem de vós, caros leitores, é
capaz de achar alguma solução para quem gosta de um pancadão? Não! O funk é a
UTI do mundo. Morte cerebral! Morte cerebral sem qualquer possibilidade de
doação de órgãos! Quem aceitaria receber um coração bate-estaca-do-tigrão? Tudo
podre! E assim, cada um é convidado a rebolar suas desmoralidades na praia do
tudo-vale! Não é a toa que ‘Vale-Tudo’, a novela, também tinha como cenário o
Rio de Janeiro. E além disso tem essa coisa do corpo malhado na academia. O
vício é tão idolatrado que precisa ser talhado para virar motivo de orgulho. Já
que é para mostrar os pecados, que eles estejam então bem definidos e visíveis!
Tudo por culpa de um abraço que vem lá de cima! Alô, alô Terezinha... aquele
abraço! Lembra, caro leitor, daquele filme fatalista chamado ‘2012’? Nesse
filme há uma cena em que o Cristo Redentor aparece desmoronando. Hollywood
queria falar do fim do mundo e acabou dando a solução para o Rio de Janeiro. Porque
assim não dá! Ou alguém acredita que depois das Olimpíadas o Rio de Janeiro vai
se emendar? Eu não acredito! Só acredito nessa redenção quando o Redentor vier
abaixo. Abaixo ao Redentor! Não sei nem porque faço essa campanha! Não moro no
Rio de Janeiro. Não sou carioca. Não moro no Rio de Janeiro nem sou carioca.
Mas sou sensível a dor alheia. Sou um poeta de sensibilidade à flor da pele.
Veja, não digo que não haja pilantragem aqui onde eu vivo. Ao contrário. Aqui a
pilantragem corre solta. Talvez haja mais pilantragem aqui do que no Rio de
Janeiro. Eu mesmo sou um pilantra. Mas aqui os procedimentos de fabricação da
pilantragem são diferentes. Diferentes e mais dignos da nossa imagem de bons
moços. E nessa vida, imagem é tudo. Em matéria de sacanagem os procedimentos
são tudo! A sacanagem aqui é de gabinete, muito mais educada, refinada e
condizente a um filho pródigo que não precisa recorrer a abraço redentor algum.
Ao invés de abraçar o Salvador, fuzilamos o vizinho. É um método mais avançado
de civilidade. Mais avançado justamente porque o Divino está bem longe. É isso
que nos salva. Aqui não existe o famoso ‘cada um por si e Deus por todos’. Aqui
preferimos o ‘cada um por si’ e Deus que se manque! Jamais o vício veste sunga
por aqui. Aqui encobrimos nossa vergonha com terno e gravata. Uma vestimenta
muito mais sofisticada. Quanto mais sofisticação, mais pecados hediondos. É isso!
Os pecados do Rio de Janeiro pertencem a pré-escola da cafajestagem, não tem
qualquer glamour, são de fácil condenação. É por isso que o Rio de Janeiro vive
patinando na vitrine da corrupção de botequim. Quem elege um Garotinho e uma
Rosinha como governantes não pode estar falando a sério! Aqui preferimos um
Maluf! Maluf é um nome que carrega uma dignidade infinitamente maior. Maluf é
árabe. Todo árabe merece respeito, por mais pilantra que seja. Não se come uma
esfiha de boca aberta, repare! Maluf é um Don Corleone. Garotinho e Rosinha são
companheiros do Bob Esponja. Aqui, longe do Rio de Janeiro, somos muito mais
civilizados. Mas essa não é uma característica intrínseca a nós. Não, não. Só
chegamos a esse patamar de evolução porque não tivemos contra nós um Divino de
braços abertos. Aqui não há Cristo Redentor. Ninguém acredita em redenção por
aqui. Somos canibais mesmo, sem fingir absolvição. É isso que falta ao Rio de
Janeiro para se emancipar. Nenhum monumento no mundo é tão ultrajante como o
Cristo Redentor. A estátua da liberdade aponta a tocha para cima num gesto de
‘para o alto e avante!’. A torre Eiffel é uma esfinge de sobriedade metálica. A
própria esfinge do Egito é um gatão sem nariz. Nenhum deles dá a mínima para os
seus habitantes. Não há condescendência possível. O erro do Cristo Redentor é
olhar para baixo e abrir um abraço, dizendo: ‘vinde a mim, ó criancinhas’. Alô,
alô torcida do flamengo: aquele abraço! Eu gosto da terça feira porque na terça
feira eu me dou o direito de praticar minha acidez. Sou ácido. Ácido e
pilantra, como já disse. Quer uma prova? Hoje não, amanhã. Amanhã lhe dou uma
prova irrefutável da minha pilantragem ácida. Quarta feira é dias das provas
irrefutáveis. Hora de estudar para a prova de amanhã. Até lá...
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Segunda feira, dia de homenagem.
Segunda feira. Segunda feira é dia de homenagens. Começo a
semana sempre inspirado, com vontade de homenagear alguém ou alguma coisa.
Termino a semana com vontade de chacinar quase a totalidade do contingente
populacional desse planeta, incluindo os camarões. Camarões são
baratas-salgadas-do-mar. Não entendo como alguém pode almoçar camarões. Comer
camarões é o mesmo que enfileirar três personagens do Kafka num espetinho e
servir no churrasco do fim de semana. Croc! Croc! Croc! Se não engolir as
anteninhas não tem sobremesa! Sou bi-polar. Na segunda feira sou adorável. Na
sexta, abominante – acabei de cunhar o termo ‘abominante’ somente em caráter
gramatical de urgência para se evitar a rima inevitável com ‘adorável’ [obs:
meu herói preferido dos quadrinhos é o Capitão Márvel]. Na hecatombe semanal
provocada por mim, só os labradores sobrariam pra contar a história. Os
labradores são inocentes. Você não é inocente, caro leitor. Se acha que é
inocente é porque é o pior dos culpados. Pergunte a um labrador se ele se acha
inocente. Ele não vai responder. Se acusá-lo de crime, então, receberá no
máximo um lambidão em troca. É preciso muita grandeza moral para devolver um
lambidão quando se é acusado de algo. Os labradores não tem culpa de nada, são
praticamente madres-teresas-de-calcutá em forma de focinho e rabo. Alguém já
viu um labrador no banco dos réus? Pois então, em matéria de cachorrada somos
nós, humanos, os animais – e não foi que noutro dia sequestraram o Zeca, um
pobre de um cachorro manso que mal se deu conta de que estava sendo alvo de um
crime hediondo? Seqüestrar cães é um crime mais que hediondo. Hediondo é termo
para nós, humanos. Todo humano é hediondo. Os cães são peludos. Peludos e
inocentes. Os labradores são inocentes justamente porque não fazem a menor
ideia que o são. Só nós temos essa mania deplorável de nos absolver – ‘todos
são inocentes até que se prove o contrário’. Grande bobagem! É exatamente por
respeitar a essa regra que incorremos nas mais terríveis crueldades. Em nome da
inocência os inocentes derramam toneladas de sangue, sempre acusando suas
vítimas de serem os culpados. Sempre foi assim. Eu faria diferente. Todos
seriam culpados até que se prove o contrário. Como eu não acredito em inocentes
nessa nossa espécie de sapiens, a brincadeira serviria ao menos para nos manter
ocupados. Uma espécie de jogo do milhão para condenados. Se o vencedor não se
salva, ao menos fica rico. Foi dessa brincadeira que surgiu a Daslu, nosso
Carandiru-do-glamour [estou afiado nas rimas!] Chega de sentenças, senhores
membros do júri! Hora das homenagens. Vamos então as homenagens de hoje.
Segunda feira é sempre dia de homenagens! Que rufem os tambores! Pode parar de
rufar, já deu! A minha homenagem de hoje vai para o Rio. Não o rio Tietê.
Pinheiros também não. O Aricanduva eu não sei nem onde fica, embora tenha fortes
suspeitas de que o budum deste não foge a regra dos outros dois. Será que o rio
Aricanduva tem algo a ver com o bairro Aricanduva? Se tiver, pura coincidência.
O meu troféu de hoje não vai para nenhum rio fedorento, vai para o Rio de
Janeiro – se bem que da última vez em que lá estive a fragrância da cidade
passava longe dos aromas de Paris. Nunca fui a Paris, mas disseram-me que se há
alguma cidade nesse mundo fedorento que não fede, essa cidade é Paris. Coitada
de Veneza, um esgotão a céu aberto – sorte que as gôndolas salvam tudo. Não as
gôndolas de mercado, as que bóiam. Bote umas gôndolas navegando no Tietê que o
fedor vira charme. Já não disse antes que tudo nessa vida é uma questão de charme?
Mais importante que a inteligência, é o charme a locomotiva do sucesso. Ou vai
me dizer que você acha o Silvio Santos inteligente? Tire-lhe o laquê do
topete que o seu império desmorona, levando o Bozo e o Chaves junto. E você,
caro leitor, qual é o seu charme? Depois você responde, agora não dá! Vá fazer
o favor de interromper o raciocínio da senhora sua avó! Comigo é assim: pá pum!
Que entrem os trompetes! A homenagem de segunda feira vai para o: Rio de
Janeiro... não digo que nunca irei homenagear o Tietê ou o Pinheiros (O
Aricanduva não sei onde fica), mas se o fizer agora irei parecer uma capivara
nostálgica, dessas que com olhos marejados recordam seus ancestrais nadando de
braçadas por debaixo da ponte das Bandeiras. Hoje, coitadas das capivas, só dá
pra apostar corrida pulando de sofá em sofá e com um pregador no focinho. Já
reparou, caro leitor, que a capivara é um bicho que todos querem bem? Mesmo sem
nunca antes termos dado de comer a uma capivara ou sequer afagado o seu
cocuruto, consideramos a capivara um bicho do bem. Ainda que um rato-gordo, a
capivara nos gera um terno sentimento afetivo. E sabe por que? Justamente por
causa do tamanho. O tamanho a deixa aprazível aos olhos humanos. O tamanho a
absolve da nojeira de seu parente intruso, a ratazana, e a eleva ao status de
roedor admirável! E o que os dois, a ratazana e a capivara, tem de tão
diferente? Nada, excluindo a participação da capivara naquele famoso filme
‘Querida, aumentei o ratão’, ambos se solidarizam nas sequências genéticas que
carregam. Isso me leva a pensar que o equívoco, quando elevado a proporções
homéricas, vira imediatamente motivo de admiração. Quando o erro se torna
gigantesco ele se emenda, pode reparar. E isso acontece também com as figuras
humanas. O duro da vida é esse contingente de funcionários públicos,
verdadeiros camundongos que não fazem outra coisa senão correr para dentro de
suas tocas depois de beliscar um pedaço de queijo preso na ratoeira.
Funcionários públicos, em sua grande maioria, são burocratas pequenininhos que
contaminam a vida alheia com equívocos miseráveis. A podridão da máquina não
está nas suas grandes engrenagens, mas nos pequenos parafusos defeituosos que a
sustentam. Hitler era um doido, mais demente que o próprio era o contingente de
anônimos que o saudava quando o bigodinho escovado do chefe passava em revista.
Agora, veja o Cachoeira! Esse não! Um
pilantra brilhante! Quase um personagem de blockbuster americano! Antes todos
seguissem o exemplo desse cafajeste! O mundo seria muito melhor. O Cachoeira é
a capivara do crime. Eu prefiro me equivocar ao extremo a ter de carregar
pedacinhos de queijo para dentro da minha toca. O mundo de hoje exige a
presença dos grandes personagens equivocados, já que os heróis ficaram para
trás desde a aposentadoria da franquia do super-homem. Falando em herói, lembro
de belos exemplos. E belos exemplos exigem palmas. Não há homenagem sem palmas.
Mas agora já está tarde demais. Deixemos para amanhã o nosso Rio de Janeiro!
domingo, 3 de junho de 2012
Não desbundo, nem solto a franga! Sou inglês...
Ele disse aquilo rápido, de repente, sem aviso prévio, assim
como um peteleco no meio da orelha. Ninguém está pronto para um peteleco na
orelha. Peteleco dói. Na orelha, então, dói ainda mais. Um peteleco pode
ofender mais que uma muqueca na orelha. Eu prefiro ser chamado dos piores nomes
a receber um peteleco na orelha. A dor moral não é nada comparada a dor de um
peteleco. Mas o que recebi naquele instante não foi um peteleco, foi na
velocidade de um peteleco, mas não um peteleco. Antes fosse um peteleco aquilo
que estava prestes a receber. Aquilo doeu, acertou bem no alvo do meu eu.
[Adoro enrolar o meu leitor no preâmbulo do texto só pra saber se ele gosta
realmente de mim. Se chegou até aqui, é porque gosta. Eu gosto de ser amado, se
não houver admiração por mim, nada feito. Se achou esse meu comentário
arrogante e prepotente, vá embora! Desista de mim. Se quiser continuar é porque
me ama. Adoro ser amado. Eu mereço!] Vamos ao que interessa! Cenário: dentro de
um carro. Situação: Volta para casa depois de ir ao teatro. Personagens: Eu e +
3, não citarei nomes para não elevar à fama os coadjuvantes do enredo, afinal,
eu sou o protagonista e o único com direito aos louros do estrelato. AÇÃO!
Estava no banco de trás do veículo e o sujeito ao lado do motorista me lança
aquilo que fazia tempo que não ouvia a meu respeito: 'o dia em que você
desbundar você decola, só falta você desbundar...' Sempre ouvi a mesma coisa,
desde os tempos da faculdade: 'desbunde, meu filho, só falta você desbundar'.
Será que a razão de eu me encontrar nesse limbo miserável é porque eu não
desbundei na minha juventude? E se eu tivesse desbundado aos 18 anos, hoje
estaria rico e famoso? Meu Deus! Eu deveria ter desbundado e não desbundei! O
tempo parou. Pausa dramática! Sentado no carro, virei uma esfinge egípcia de
ódio com a minha recusa injustificável em desbundar nos idos anos do passado
que não volta. Rapidamente passou um filme pela minha cabeça, desses que a
gente vê quando está prestes a empacotar – primeiro o túnel com a luz ao fundo,
depois o filminho-brega da sua triste vida em retrospectiva. Se no seu filminho
a trilha sonora estiver a cargo do Michel Teló, peça pra pular a projeção, você
vai direto pro inferno. Será que só o moribundo assiste a esse
filme-de-presunto, ou convidados aparecem na platéia pra rir também da sua
vergonha? Eu não quero convidado nenhum. A vida é minha. Só eu tenho direito de
chorar ao ver o dia em que vomitei na mesa porque minha mãe obrigou-me a comer
camarão. Camarão é um bicho-antenudo-do-mar, mais conhecido como
barata-salgada, que nem na hora da morte irei perdoar! Do mar para as penas. A
verdade é que desbundar tem a ver com soltar a franga. E eu não solto franga
nenhuma, não sou obrigado. Onde está no contrato que é preciso, em algum
momento da vida, soltar a franga? Não que eu não tenha uma franga presa sob os
meus domínios, todos tem uma franga, mas soltá-la ao Deus dará pra virar frango
de macumba na primeira encruzilhada... ah não! Franga minha eu preservo, dou de
comer, faço dormir no meu travesseiro, ensino os bons costumes. Franga minha
toma chá às 17hs, todos os dias. Minha franga é Chicken, porque eu sou inglês.
Até a rainha da Inglaterra tem uma frangona por debaixo daquele vestido de
realeza. Agora, pergunte pra mim quando foi que a rainha soltou sua Chicken-Queen
pra ciscar pelos jardins de Buckingham... perguntou? Respondo: nunca! Inglês
não sai por aí soltando a franga. Eu sou inglês. A cegonha me derrubou por
acaso quando passava pelo Brasil, depois de tomar um tabefe tropical provocado
pelo vilão El-Niño. Eu não tenho nada a ver com a Carmen Miranda. Não existe
nenhum cocar de bananas no meu guarda-roupas. No carnaval eu viro uma freira
carmelita. No meu guarda-roupas tem fraques, cartolas, bengalas e um cachimbo.
Sou inglês. Só solto a franga depois da troca da guarda real, e na intimidade
do meu toucador. Tem uma peça em cartaz que se chama ‘Macumba Antropófaga’. Não
vou ver. Nem amarrado saio de casa pra uma sessão de macumba antropófaga. Não
sou antropófago, com todo respeito aos modernistas. Sou antropô, se você quiser
ficar responsável pelo pófago, o problema é seu, vá fagocitar o que quiser, mas
longe de mim. Não rebolo e não faço macumba. Se macumba fosse coisa boa não se
chamaria má-cumba, seria boacumba. É isso! Em tempos de macumba, quem prende a
franga é rei! Sou o anti-desbundador assumido! Não desbundarei por nada nessa
vida! Enquanto isso, o meu talento decola...
sábado, 2 de junho de 2012
Eu prefiro ser anão do que cego!
Eu prefiro ser anão do que cego. Essa é uma das minhas máximas irrevogáveis. Já pensei em fazer um adesivo com a tal frase e colar no meu carro. Sou sádico assumido. Qual é o problema? Não sou politicamente-correto e gosto de quem experimenta praticar um sadismo poético em doses homeopáticas. A homeopatia nesse caso é fundamental, senão você corre o risco de abandonar a poesia e reencarnar o alemão do bigodinho escovado. Eu sou poeta, não se preocupe, trabalho no campo do simbólico. O simbólico me salva. No simbólico tenho o direito (e o dever) de ser sádico até a última gota do néctar vermelho que corre nas minhas veias - olha que bonita essa imagem: néctar das minhas veias! Eu sou um poeta! Sou um Poeta-do-sádico, mas ainda assim, poeta. Essa é a graça do homem inteligente, basta um empurrãozinho para abandonar a correção e vestir a capa do vilão grotesco, e se não fosse esse precário equilíbrio entre o que é luz e o que é trevas, não haveria inteligência possível. O principal ingrediente da inteligência é o sadismo. Eu sou inteligente (sorry!). A penumbra é o lugar do homem inteligente. O homem inteligente bota o nariz na luz para depois recolher-se na sombra. As antas são claras, translúcidas, de uma toupeirice cristalina, tomam sol direto no focinho sem vergonha alguma - no dia seguinte estão vermelhonas porque se esqueceram do protetor solar. Você nunca encontraria um homem inteligente rolando na areia da praia feito um bife à milanesa. Os inteligentes estão sempre debaixo do guarda-sol. Quem é realmente inteligente não recusa nunca o desequilíbrio, pode reparar! Já com as antas, na primeira oportunidade, fincam as patas no chão e criam raízes de fazer inveja a uma seringueira da Amazônia. Toda anta é boazinha. Desconfio dos bonzinhos. Os bonzinhos são quase sempre burros, previsíveis, mentirosos, perigosos e chatos. Aliás, tenho medo dos bonzinhos. Morro de pavor desses beatos que correm atrás de uma estátua religiosa do padroeiro-não-sei-das-quantas. Tenho a nítida sensação de que todos são seriais-killers fugitivos de uma penitenciária de segurança máxima à la Bangu 1. Padinho Ciço era da máfia, tenho certeza. Os sádicos assumidos não! Os sádicos assumidos são inofensivos. Todos somos sádicos, mas só os assumidos são inofensivos. Eu sou um sádico assumido, um poeta e um homem inteligente (sorry!). Você que me lê também é sádico, se não fosse sádico já teria parado de percorrer essa minha ladainha logo no título. Agora só resta se assumir. Saia desse armário do politicamente-correto e ganhe sua carta de alforria em nome do obscuro! Mas não precisa se afogar nesse seu pecado horroroso, caro leitor. Mais merecedores de castigo são os castos. Todo casto é um obsceno, já diria o mestre. É só olhar para a cara o papa que você vai me entender. Quando olho para a cara do papa eu dou graças à Deus por saber que o Cão me espera no inferno. Já imaginou passar a eternidade com o papa no céu? Eu prefiro mil vezes sair pra passear com o Cão pelas encruzilhadas do subsolo. Eu adoro cachorros, vou com eles até o purgatório se precisar... e se o Cão for realmente um cão, eu selo meu destino agora: vou pro inferno! Voltemos ao nosso assunto. Como já dizia, eu prefiro ser anão do que cego. Isso por uma razão muito simples: os cegos são mais inteligentes que todos nós, videntes. E isso me desperta um medo atroz. Mas essa é uma inteligência especial, sensitiva, diferente daquilo que forma o argumento intelectual. Quer ver a prova? Édipo só fura os olhos porque se torna sábio, porque descobre que não há mais nada por conhecer. Édipo vira espírito depois de cego, vaga pelos campos como um espectro que tudo sente, tudo vê e tudo sabe sem precisar fazer uso dos olhos. Tirésias, outro personagem da história, só é um oráculo porque não enxerga. É ele, antes de todos, quem pressente a tragédia do protagonista. E esse talento é ditado pela cegueira. Bote umas retinas saudáveis no pobre Tirésias que o velho instantaneamente perde todo o seu potencial dramático. Mas chega de poesia! A verdade é que num belo dia, ao passar numa rua dirigindo meu carro, flagrei uma fila de cegos sendo liderada por um outro, pasmem!, cego - um cego-líder. Quase bati o carro de desespero! Não pelos cegos, mas pela cena. Uma matilha de filósofos-espectrais andando numa calçada de SP! Mais tarde, no mesmo dia, contei pra alguém o que havia visto e a pessoa prontamente me recriminou com um: 'seu insensível! Por que não foi ajudar os coitadinhos?' Eu respondi rapidamente, ainda embevecido pelo terror catártico da cena recente: 'de jeito nenhum! Vai que os cegos resolvem me seguir?'. Eu tenho pavor de filósofos. Os cegos são filósofos! Tudo sabem, tudo conhecem. Eu prefiro ainda ser um homem inteligente que sabe que é burro, ainda preciso ler para conhecer, ver para crer. Essa é a diferença do burro para o inteligente: o burro nunca sabe que é burro, ao passo que todo inteligente tem total consciência da sua jumentice. Quanto ao anão... ah! Deixa pra lá! Obs: favor não ler esse depoimento para nenhum cego, eles já sabem o suficiente para não se incomodar com essa filosofia-de-botequim...
sexta-feira, 1 de junho de 2012
Saudades da Idade Média, tempos em que não se fazia média...
Queria ter nascido na Idade Média. Não se deixe levar pelo nome, na Idade Média ninguém fazia média... média fazemos nós, eu e você, escravos do contemporâneo - eu sou um escravo do contemporâneo e você também é, quer ver? Estou escrevendo essa minha ladainha num Imac. E se você está lendo isso, perdoe-me a triste sentença, mas também é um escravo... eu e você, dois belos escravos (eu sou belo, eu me garanto, e você? É bonitinho?). Tecnologia não liberta coisa nenhuma, muito menos democratiza o que quer que seja. Tecnologia cria a escola superior de se fazer média. Todo mundo que usa esse negócio chamado computador é especialista em fazer média. Dificilmente algum escravo desse nosso triste tempo sai de peito aberto ao campo de batalha. Não há mais campos de batalha, com exceção do Pacaembu em noite de derrota do Corinthians na Libertadores... aí o bicho pega (sou corinthiano, não venha gozar do meu timão, só eu tenho esse direito!). Voltemos ao assunto. Na Idade Média havia uma infinidade de campos de batalha! Ou você afiava a sua lança ou provavelmente terminaria lambendo a grama, com a jugular aberta. Se fosse comprar pãozinho na padaria da esquina, era bastante aconselhável levar junto sua espada e seu escudo, afinal, vai que...? E Hoje? Hoje se compra pãozinho na padaria na maior ingenuidade, sem nenhum teor dramático! Que desperdício! Acabaram-se os campos de batalha, sobraram as lan-houses, verdadeiros calabouços de prisioneiros fazedores de média. O homem dos nossos dias é o politicamente-correto, o anti-Idade Média por excelência, alguém burilado no talento de morder e assoprar ao mesmo. Ah que saudades da Idade Média! Tempo em que se resolvia tudo na base da fogueira! Imagine se existiria CPI na Idade Média! Qualquer cachoeira seria apagada num instantinho assim: schhhhhhhhhhhhhh. Isso! Não se fazia média na Idade Média. Quando digo que gostaria de ter nascido na Idade Média, basta eu virar a esquina para cruzar com a seguinte réplica: 'Ah é? E quando o senhor tivesse uma dorzinha de dente mixuruca, como faz? Aposto que pegaria correndo uma carona com Marty Mcfly de volta pro futuro'. Não faria isso, não! Nem que a rainha da Inglaterra aparecesse com seu Rolls-Royce pra me buscar eu voltaria (e olha que eu sou inglês de sangue azul, tenho especial apreço pela turma de Windsor). A grande benção da Idade Média está na inauguração da mula como meio de transporte. Eu prefiro ter uma dor de dente lancinante a ter de enfrentar a 23 de Maio todo dia. Aliás, eu prefiro arrancar todos os dentes a ter de ficar parado na 23 de Maio... pensando bem, eu arrancaria minha cabeça fora pra evitar me congestionar na 23! Viraria uma mula-sem-cabeça, personagem da Idade Média, mas estaria livre do trânsito. Hoje não temos mulas porque é muito asno ao volante pra competir com tanto relincho de ignorância. Imagine um congestionamento de mulas na Idade Média! Devia ser o maior barato... ao menos daria pra coçar a crina do bicho enquanto o farol não abrisse. Shakespeare só virou Shakespeare porque desfilou pela Idade Média... coitado do Shakespeare se vivesse nos dias atuais, teria de dar conta do horário nobre das nove horas pra escrever melodramas de botequim. Eu sou mais adepto das bruxas metafísicas do rapaz de Stratford Upon Avon. Ah! Gostaria de ser um personagem medieval! Não faço questão de fazer um mártir, não... deixo as lágrimas para a Joana, a Dark. Poderia interpretar um desses equivocados que acreditava que a terra era o centro do universo, abrindo a bíblia pra justificar que o homem foi feito do barro divino. Imagine que maravilha entrar para a história como um personagem redondamente equivocado? Muito melhor do que morrer feliz na filosofia politicamente-correta de hoje (minha mãe quer que eu me aposente como funcionário público, o que eu faço?). Monstros no fundo do mar, oceanos misteriosos, bruxarias (muito antes do mago Paulo Coelho andar pelo caminho de Santiago com um falcão pendurado no ombro), feitiços... ahhh eu não me importaria em jogar o conteúdo do meu penico pela janela! Gostaria de ter nascido na Idade Média!
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