domingo, 23 de dezembro de 2012
Sou um velho cheio de rugas, carente das histórias que já se foram...
Para além dos poucos anos que carrego, sou um velho; mas sou um velho de proporções matusalímicas, contando muito mais de cem anos nas costas, cada palmo do meu ser engruvinhado em rugas de memórias que eu vivi só no desejo de um dia ter vivido. Se gosto do passado não é por admiração ao que foi e já não pode ser mais, mas porque sei que a história dos capítulos pregressos escreve linhas que me atam a um sentido de tempo estagnado, um tipo de tempo contemplativo que não me exige nada além do contemplar. Vejo agora que a minha nostalgia é uma força infinitamente maior do que aquela que cria, remando no leito turvo das minhas reminiscências até a época de comunhão com os deuses na terra, muito antes de qualquer evangelho surgir. A tragédia do tempo que avança não está na velocidade, cada vez mais vertiginosa, de se abandonar os pedaços de sentido que nos faziam sustentar a alma, mas na decadente e gradual perda dos mistérios. Minha nostalgia vem dos tempos em que o mistério nos enovelava em seu colchão de bordas invisíveis, olhando para o céu e explicando sem ver e vendo ao mesmo tempo o que há por trás de tanta grandiloquência silenciosa. Como uma taça que se estilhaça ao ser arremessada ao chão, a ânsia por respostas quebra a magia que outrora mantinha inteiriço o prazer da confusão daquilo que não se explica por linhas retas. O tempo que avança desanuvia o branco opaco dos olhos, colocando-nos capacetes de viseiras polidas para melhor ver o que vem. É nesse lugar de visão perfeita, de vistas que se acreditam perfeitas, que o mistério naufraga para dar passagem ao isso-é-igual-aquilo-haja-visto-quê-e-portanto-não-sei-o-quê-mais... As palavras que antes se juntavam ao cerimonial religioso do transcender para celebrar, hoje deitam sobre páginas em branco à espera de corretores ortográficos, servindo de plataforma à ideias de políticas tão rasas, empostadas por atores em cima de palcos tão egoístas. Minha nostalgia é a do tempo em que a música dava voltas ao redor de si própria para nesse redemoinho sem começo nem meio e nem fim materializar toda uma reverência melódica às dimensões incalculáveis desse universo, e nessa sinfonia de timbres variados o homem podia navegar como um dos elos de algo ao qual, mesmo sem saber, ele sabia que pertencia. Minha nostalgia é a do tempo em que os animais eram eles próprios Deuses na Terra, bastando sentir a presença de um tigre para ter a certeza de que os passos desse enorme felino não podem ser unicamente guiados por uma relação matemática de causa e efeito, havendo nele e em todos os seus companheiros selvagens um ingrediente concreto de espiritualidade latente. Não se fica impassível ao olhar frente a frente o simples espreguiçar de um cão, e o cão, sabedor do seu papel de mestre dos que perderam o vínculo espiritual nessa aventura da existência, torna-se o melhor amigo do homem não por acaso. Antes de seguir a qualquer evangelho, de obedecer a qualquer cartilha de ética e moral, antes de me doutrinar nas cátedras eruditas, eu dou-me o direito de conversar com o meu cão, levá-lo para passear, deixá-lo lamber as minhas mãos, alimentá-lo e compreender seu sofrimento quando algo lhe faz sofrer. Minha nostalgia é a do tempo em que não precisávamos tagarelar para conversar, onde as fronteiras do se fazer entender estavam para além da força atroz dessa nossa garganta que expulsa torrentes de ladainhas a cada segundo; minha nostalgia vem do tempo em que Dionísio mediava o saber e o pertencer através do meio termo entre uma coisa e outra, entre aquilo que é e aquilo que não é, entre a realidade concreta do homem e a face misteriosa da máscara do teatro; tempos em que o homem sabia-se pequeno, mas ao se saber pequeno podia engrandecer, alcançar territórios infinitos mesmo estando com os pés fincados ao chão. Sou um velho de proporções matusalímicas, carente do pó mágico de um passado ancestral que não volta mais...
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