domingo, 2 de dezembro de 2012

Epílogo de um cão...


Querido dono, li o que escreveu a meu respeito e resolvi romper com o silêncio para um pronunciamento oficial. É certo que fizemos um pacto de que eu nunca abriria a minha boca em forma de focinho preto, salvo quando tivesse certeza daquilo que quisesse dizer – e como eu nunca tive certeza de nada nessa minha curta vida de cachorro, não houve porque quebrar o nosso combinado. Assim passei nossos anos de convivência: em silêncio, às vezes me dando o direito de produzir alguns poucos ruídos inocentes, como o de roncar, bocejar... outras vezes arfava feliz com a língua pendendo para fora e emitia alguns grunhidos de satisfação... tá bem, confesso, não há porque mentir, não nessa altura do campeonato – também posso ter sido um tanto quanto  impertinente por chorar e ganir, implorando por um passeiozinho pelo bairro. Há de convir que uma volta na esquina para cheirar o poste tem o mesmo valor que uma viagem à Disney para gente da sua espécie. Mas foi só! Nunca fiz uso do verbo para me dirigir a você ou a qualquer outro de sua raça, embora, é bom que se diga, pudesse muito bem a qualquer momento palestrar em sua língua sobre os mais variados temas e tópicos, desde o absurdo do asfaltamento das ruas do nosso bairro até a questionável, porém compreensível, proibição impingida a nós, cachorros, de darmos um ligeiro mergulho na piscina do quintal. Mas as coisas mudaram, afinal, o trato feito não considera, pelo menos não em contrato assinado em cartório – e isso eu fiz questão de verificar -, o estado em que agora me encontro. Uma vez despachada para o céu dos focinhos, e não havendo qualquer cláusula proibitória que impeça um cachorro morto de falar, ou, pelo menos, de escrever, venho através desse depoimento retribuir na mesma medida a linda homenagem feita a mim por suas palavras. Obrigado, querido dono! Ainda que houvesse a possibilidade nas nossas tenras infâncias caninas de discutir com a cegonha o destino de nossas moradas, ainda assim teria por certo escolhido a sua companhia como destino final. Os aprendizados foram muitos e as curiosidades também. Que tipo esquisito é esse ao qual pertence, meu dono! E falo isso sem nenhum tom de reprimenda – lamberia sua mão agora se pudesse, só para provar minha sinceridade. É bastante interessante lidar com essa espécie que anda em duas pernas, sempre apressada em ir a algum lugar que nunca se sabe ao certo... e quando volta sabe-se lá de onde, traz no rosto uma expressão indecifrável, do tipo: ‘adivinha o que me aconteceu?’. É claro que o meu faro de cachorro era extremamente competente para mapear todo e qualquer sentimento importado da rua, o que me levava a aproximar-me de você para conversarmos mais a fundo sobre as questões que o atormentavam. Que coisa mais incrível! Vocês, meu dono, nunca estão onde querem estar, ou nunca conseguem fincar os pés no aqui e agora – transitam entre o que foi, o que poderia ter sido e o que quiçá será, embrulhando tudo e qualquer coisa para fugir daquilo que são no instante em que são! Nós, cachorros, não temos esse problema, e digo ‘problema’ porque vejo, ou conseguia ver enquanto vivia, que isso os atormenta tremendamente. Lembra-se daquela vez em que você saiu de casa angustiado com a sua iminente apresentação de formatura, todo ansioso e temeroso de que algo desse errado, e antes de apanhar o carro veio até mim para apertar o meu focinho cúmplice das suas crises íntimas e me sussurrar ao ouvido: ‘deseje-me sorte... quando voltar a vê-la tudo já estará terminado’? Naquele momento eu balancei o rabo e lhe lambi a mão, mas aquilo, posso confessar agora depois de morta, foi somente um jeito de disfarçar a minha também aflição gerada por sua cara branca de pavor; sim, porque pela sua voz, meu querido dono, parecia que o mundo estava prestes a parar de girar, dependendo do seu tão aguardado desempenho. Quando voltou mais tarde, estampava um sorriso no rosto... e eu pensei: ‘ufa!’ Eu torci por você, meu dono, não sabe o quanto eu torci por você... se tivesse me levado junto, eu teria levantado da cadeira e aplaudido de pé a sua apresentação. Mas aos cachorros o que é dos cachorros! - como diria alguém lá do Egito antigo. O que eu quero dizer, querido dono, é que a sua espécie tem uma real aptidão para criar monstros que não existem, ou só existem por habitar a cabeça de quem pertence a sua mesma condição. Se a grama deixasse de crescer lá do lado de fora, o sol não apontasse no horizonte na manhã seguinte e se a água não mais escorresse pela mangueira... aí sim teríamos um problema sério... mas todo o resto são divagações sem propósito algum! Digo isso, meu querido dono, porque foi o que aprendi com você, a decifrar essa mente tão enovelada que vocês, humanos, adoram preservar. Ah, querido dono, parto dessa para uma melhor... as agruras da velhice já me travavam o corpo e me causavam muita dor. Mas saiba que um cachorro morto tem o seu descanso merecido, e só interrompo as minhas férias no além porque uma certeza me faz finalmente abrir o focinho para falar: Obrigado, querido dono... e não deixe de olhar para o horizonte, ele sempre se repete, e isso faz todo e qualquer problema parecer um grão de arroz frente ao tamanho do mundo. AU!

Naomi.    

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