Querido dono, li o que escreveu a meu respeito e resolvi
romper com o silêncio para um pronunciamento oficial. É certo que fizemos um
pacto de que eu nunca abriria a minha boca em forma de focinho preto, salvo
quando tivesse certeza daquilo que quisesse dizer – e como eu nunca tive
certeza de nada nessa minha curta vida de cachorro, não houve porque quebrar o
nosso combinado. Assim passei nossos anos de convivência: em silêncio, às vezes
me dando o direito de produzir alguns poucos ruídos inocentes, como o de
roncar, bocejar... outras vezes arfava feliz com a língua pendendo para fora e
emitia alguns grunhidos de satisfação... tá bem, confesso, não há porque
mentir, não nessa altura do campeonato – também posso ter sido um tanto
quanto impertinente por chorar e ganir,
implorando por um passeiozinho pelo bairro. Há de convir que uma volta na
esquina para cheirar o poste tem o mesmo valor que uma viagem à Disney para
gente da sua espécie. Mas foi só! Nunca fiz uso do verbo para me dirigir a você
ou a qualquer outro de sua raça, embora, é bom que se diga, pudesse muito bem a
qualquer momento palestrar em sua língua sobre os mais variados temas e
tópicos, desde o absurdo do asfaltamento das ruas do nosso bairro até a
questionável, porém compreensível, proibição impingida a nós, cachorros, de
darmos um ligeiro mergulho na piscina do quintal. Mas as coisas mudaram,
afinal, o trato feito não considera, pelo menos não em contrato assinado em
cartório – e isso eu fiz questão de verificar -, o estado em que agora me encontro.
Uma vez despachada para o céu dos focinhos, e não havendo qualquer cláusula
proibitória que impeça um cachorro morto de falar, ou, pelo menos, de escrever,
venho através desse depoimento retribuir na mesma medida a linda homenagem
feita a mim por suas palavras. Obrigado, querido dono! Ainda que houvesse a
possibilidade nas nossas tenras infâncias caninas de discutir com a cegonha o
destino de nossas moradas, ainda assim teria por certo escolhido a sua
companhia como destino final. Os aprendizados foram muitos e as curiosidades
também. Que tipo esquisito é esse ao qual pertence, meu dono! E falo isso sem
nenhum tom de reprimenda – lamberia sua mão agora se pudesse, só para provar
minha sinceridade. É bastante interessante lidar com essa espécie que anda em
duas pernas, sempre apressada em ir a algum lugar que nunca se sabe ao certo...
e quando volta sabe-se lá de onde, traz no rosto uma expressão indecifrável, do
tipo: ‘adivinha o que me aconteceu?’. É claro que o meu faro de cachorro era
extremamente competente para mapear todo e qualquer sentimento importado da
rua, o que me levava a aproximar-me de você para conversarmos mais a fundo
sobre as questões que o atormentavam. Que coisa mais incrível! Vocês, meu dono,
nunca estão onde querem estar, ou nunca conseguem fincar os pés no aqui e agora
– transitam entre o que foi, o que poderia ter sido e o que quiçá será,
embrulhando tudo e qualquer coisa para fugir daquilo que são no instante em que
são! Nós, cachorros, não temos esse problema, e digo ‘problema’ porque vejo, ou
conseguia ver enquanto vivia, que isso os atormenta tremendamente. Lembra-se
daquela vez em que você saiu de casa angustiado com a sua iminente apresentação
de formatura, todo ansioso e temeroso de que algo desse errado, e antes de
apanhar o carro veio até mim para apertar o meu focinho cúmplice das suas
crises íntimas e me sussurrar ao ouvido: ‘deseje-me sorte... quando voltar a
vê-la tudo já estará terminado’? Naquele momento eu balancei o rabo e lhe lambi
a mão, mas aquilo, posso confessar agora depois de morta, foi somente um jeito
de disfarçar a minha também aflição gerada por sua cara branca de pavor; sim,
porque pela sua voz, meu querido dono, parecia que o mundo estava prestes a
parar de girar, dependendo do seu tão aguardado desempenho. Quando voltou mais
tarde, estampava um sorriso no rosto... e eu pensei: ‘ufa!’ Eu torci por você,
meu dono, não sabe o quanto eu torci por você... se tivesse me levado junto, eu
teria levantado da cadeira e aplaudido de pé a sua apresentação. Mas aos cachorros
o que é dos cachorros! - como diria alguém lá do Egito antigo. O que eu quero
dizer, querido dono, é que a sua espécie tem uma real aptidão para criar
monstros que não existem, ou só existem por habitar a cabeça de quem pertence a
sua mesma condição. Se a grama deixasse de crescer lá do lado de fora, o sol
não apontasse no horizonte na manhã seguinte e se a água não mais escorresse
pela mangueira... aí sim teríamos um problema sério... mas todo o resto são
divagações sem propósito algum! Digo isso, meu querido dono, porque foi o que
aprendi com você, a decifrar essa mente tão enovelada que vocês, humanos,
adoram preservar. Ah, querido dono, parto dessa para uma melhor... as agruras
da velhice já me travavam o corpo e me causavam muita dor. Mas saiba que um
cachorro morto tem o seu descanso merecido, e só interrompo as minhas férias no
além porque uma certeza me faz finalmente abrir o focinho para falar: Obrigado,
querido dono... e não deixe de olhar para o horizonte, ele sempre se repete, e
isso faz todo e qualquer problema parecer um grão de arroz frente ao tamanho do
mundo. AU!
Naomi.
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