quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Beckett no boteco da minha esquina...



Estava eu caminhando rumo ao sacolão – um dos entreatos nada cômicos a que resolvi afeiçoar-me depois de morar sozinho -, quando passo diante de um bar mixuruca de esquina, desses que podiam muito bem emprestar o endereço para qualquer cidadezinha do interior, do tipo cinco mil habitantes para baixo e-lá-se-vai-mais-um-pra-debaixo-da-terra, amém. São Paulo tem dessas coisas, de um lado uma avenida digna de uma metrópole de ficção científica, com carros atulhados no meio de uma chuva ácida à la Blade Runner, do outro um boteco onde o tempo não anda. E eu parei de andar um instantezinho, dando um tempo de descanso para minhas panturrilhas magricelas made-in-Etiópia, justamente para olhar o interessante quadro que se pintava dentro daquele pequeno bar beckettiano de esquina. A cena era quase morta, como se alguém estivesse dirigindo os atores e gritasse: estátua! Um cliente solitário estava sentado num dos três banquinhos encostados ao balcão, eu o via somente de costas, totalmente paralisado a olhar para a senhora estante de bebidas que havia do outro lado a sua frente. Mesmo que de costas, pude entender a tamanha guerra silenciosa que travava consigo próprio: qual delas escolher? Conhaque? Pinga? Cachaça... isso tudo corroborado por suas mãos, formando juntas a posição de reza dos necessitados, bem próximas ao rosto. O dono do lugar estava do outro lado do bar, também imóvel, a olhar um antigo aparelho de televisão posicionado no alto do estabelecimento, do seu ombro direito pendia um pano de prato mirrado e sujo que nas mãos de um mecânico não traria nenhuma esquisitice quanto à sua função. Além do ruído indistinto do aparelho de televisão, o ranger das pás de um antigo ventilador de teto também exigia sua parte na sinfonia da miséria. Vez ou outra uma mosca fazia vôos rasantes bem perto do nariz do dono do bar, o que o obrigava a apanhar o seu pano de engraxar carburador e executar um movimento de preguiça homérica, muito mais no intuito de dizer à mosca ‘vá plantar batatas’, do que para anunciar qualquer sentença de morte ao bicho voador. Nada mais acontecia, só isso: dois personagens estáticos, um no diálogo mental com a dúvida do que escolher para se embebedar, o outro atento a qualquer programa sem importância na televisão. No meio dos dois, uma mosca convocava à cena um movimento que ambos teimavam em aceitar. Imaginei ser aquela uma bela metáfora da vida... a despeito de qual bebida apadrinhar, aquele homem teria um único e certo destino: a sarjeta, trôpego de tanta comunhão com o álcool. E deste lado daqui, na posição dos analistas de cenas de botecos chinfrins, eu pergunto: que diferença faz beber da garrafa da arquitetura, do direito, das ciências sociais ou mesmo das artes cênicas, se no fim o único destino que nos é reservado é a sarjeta dos combalidos pela morte? Se o álcool é para o bêbado um jeito de suportar a vida, para nós, os sóbrios intelectuais formados na base das cartilhas da ética e da moral, são os papéis sociais o narcótico desejado. Nada acontecia. O dono do bar devia estar pronto para atender o cliente, mas enquanto este não decidia nada, que custo havia em também experimentar o prazer da letargia existencial? Um espera o outro que esperava a si próprio... a única coisa viva naquele lugar era a mosca. Uma bela sala de espera, eis a vida, e enquanto não se decide nada, melhor esperar... um jeito seguro de não se comprometer e evitar qualquer esforço desnecessário é esperar. ‘A espera de algo’, bem que podia ser esse o título do quadro que eu via enquanto minhas panturrilhas do Gabão descansavam. E eu não quis esperar para ver, apressei meu passo em busca da minha couve-manteiga que não sei e nunca soube cozinhar, mas teria de aprender se não quisesse esperá-las murchar dentro do ar condicionado da minha geladeira. Na volta passei novamente na frente do bar... tarde demais: portas fechadas. Mas não me surpreenderia em nada se hoje, no dia seguinte à minha excursão ao sacolão, aqueles dois personagens estivessem exatamente nas mesmas posições e atitudes em que os vi, repetindo uma cena que nunca de fato começou... e que só irá de fato terminar quando as portas do bar cerrarem para nunca mais subir...

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