O homem é covarde, um covarde de firma reconhecida no cartório,
covarde de carteirinha. Numa disputa entre covardes o homem concorreria consigo
próprio. Não há concorrentes à altura do homem em matéria de covardia. A
covardia é um atributo humano, animais não são covardes, os bichos podem ser frágeis,
fracos, doentes, mas não covardes. Covarde só o homem pode ser. O homem é
covarde porque se diz corajoso, fingindo ser muito maior do que de fato é. A
consciência, essa voz metafísica instalada dentro da cabeça de cada um de nós e
que não se cansa em repetir a famosa ladainha ‘penso, logo existo’ é a responsável
por toda a farsa. Maldito Descartes e toda a corja de iluministas! Iluminaram o
nosso ego mentiroso e covarde, e só! Os loucos da Idade Média eram muito mais
sinceros e apaixonantes que os seus sucessores da era da razão. A razão trouxe
junto a consciência. A consciência é o silicone moral, uma prótese que tenta a
todo custo levantar a auto-estima para provar que a nossa existência não é um
mero acidente, mas produto de uma missão altamente importante que servirá de
exemplo primoroso aos nossos semelhantes. Para justificar o quão covardes
somos, criamos a ideia de Deus e todos os personagens que dão suporte a esse
herói invisível que no auge do seu tédio celestial resolveu brincar de criar
avatares para matar o tempo. Somos tão covardes que precisamos acreditar que
somos únicos. Únicos e humildes, porque faz parte da covardia se colocar na
posição de vítima do mundo, de ovelha do rebanho, triste coadjuvante num enredo
cujo protagonista é o outro. Covardia e coragem são faces da mesma moeda. Moeda
escondida dentro do bolso humano. A barata é a prova irrefutável de que somos
todos covardes. Na intimidade do seu lar, o mais invejável dos representantes
humanos hesita quando avista um baratão atravessando o chão de sua residência –
não é a toa que a indústria química lança a cada ano um novo spray anti-barata,
tentativas sempre frustradas de se fazer prevalecer sobre o ser abominável do
esgoto. Inclua a cena do Rambo sendo pego desprevenido por uma barata que faz
coceguinhas no seu pé de salvador da pátria e ele imediatamente larga a
metralhadora para virar apresentador de programa de fofoca nas tardes da
televisão. Isso sem contar as inúmeras marcas de chinelos e tamancos que, a
rigor, não servem tanto para calçar os pés, mas para oferecer uma distância
segura entre a mão do sujeito e o inimigo de antenas que se espreita
cambaleante pelas frestas do lar. Se a barata tiver asas e puder voar, então, é
como se toda a dignidade ética e moral da nossa raça fosse imediatamente embora
pelo ralo. Nenhum mestre de academia sobrevive ao vôo de uma barata tropical. Se
Gregor Samsa acordasse no seu quarto transformado não numa barata, mas numa
lagartixa, a história de Kafka perderia toda a força. A barata é uma afronta ao
destino humano, o último estágio da decência que supera aquilo que ambicionamos
ser. As unhas são outro índice da nossa covardia. Basta ver as unhas de um
homem para comprovar. O leão só é o senhor da selva porque carrega junto às
suas patas garras enormes. Leve o bicho numa manicure e ele voltará para seu
habitat mais manso que um gatinho de pelúcia. Hamlet não consegue agir porque
suas unhas são curtas, podadas na mesma medida da sua elegância intelectual. Complexo
de Wolverine – Oh maldita queratina que não me deixa vingar a morte de papai! É
isso. Somos todos covardes. Unha, barata e consciência... uma combinação improvável,
mas que desmancha toda a petulância moral que nos serve de figurino para
brilhar em cima do palco da vida.
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