Viver é encalacrar-se. O sujeito mais admirado nos tempos
que se seguem é o encalacrado. Encalacre-se e verá, será respeitadíssimo,
motivo de admiração e orgulho para seus colegas e familiares. Até mesmo a
sociedade adora render homenagens orgulhosas ao encalacrado filho de sua terra.
O encalacramento é um processo lento e gradual de fabricação de nós cegos à
prova de desatamento que acaba sempre numa região sem retorno, mais conhecida
como beco-sem-saída. O beco-sem-saída é um território altamente desejado pelo
aspirante ao título de encalacrado. Há várias maneiras de trilhar o rumo da
encalacração. Quem compra um carro já está no caminho certo, embora não seja
possível trilhar caminho algum dentro dessa lata de alumínio quente,
especialmente projetada para ser admirada no seu estado de preguiça mórbida,
bem no meio de um congestionamento-monstro. O congestionamento, por isso mesmo,
é uma etapa segura para o sujeito que deseja encalacrar-se profissionalmente. O
encalacrado jamais aceitaria deslizar sem rumo com o vento a lhe bater no
rosto. Não! O encalacrado faz de tudo para não sair do lugar e isso lhe cai
muito bem. No rumo da encalacração é urgente e necessário procriar. Todo
encalacrado exige rebentos que lhe representem no futuro, transmitindo sua
herança genética para sucessores que nada tem a ver com a encalacração de quem
os predestinou a uma futura e próspera encalacração. Um encalacrado nunca se
admite sozinho, muito pelo contrário, a vida de um encalacrado é repleta de
berros, uivos, choramingos, lamentos, risos, gargalhadas em coro. Não há
monólogos na encalacração diária de um encalacrado, apenas elencos gigantescos
que o forçam a sumir no meio do corpo de baile. Faz parte do regime
encalacratório fugir do foco do holofote para botar outro desavisado no alvo
das atenções. Não há maneira de se tornar um legítimo encalacrado se não houver
uma árdua batalha cujo intuito final é a conquista de uma vaga de emprego numa
grande empresa ou numa repartição pública. Todo encalacrado é um ótimo
funcionário. Todo encalacrado sabe que passará a vida inteira apertando
eficientemente os mesmos botões até conseguir chegar à gerência, quando poderá
ensinar aos estagiários-encalacrantes a maneira correta de fazer aquilo que até
um chimpanzé analfabeto saberia executar. Todo encalacrado veste terno e
gravata e se orgulha de passar calor debaixo do sol tropical. O figurino
encalacrante é um ótimo emblema da eficiência encalacratória do seu dono encalacrador.
Todo encalacrado tem um regime alimentar digno da sua fartura monetária. O
encalacrado não economiza garfadas suculentas em gorduras nobres, aumentando a
circunferência da sua pança para que suas tripas internas sejam admiradas pela
junta médica na iminente lipoaspiração escultural. Todo encalacrado sempre se
preocupa com o amanhã, tratando o momento presente como uma vagabunda de
esquina para justamente garantir mais ingredientes encalacratórios num futuro
remoto. O encalacrado também é erudito, instruído na arte de morder e assoprar
para nunca correr o risco de se comprometer perante o julgamento alheio. Existe
toda uma técnica que oferece ao encalacrado a qualidade de dizer um monte de
coisas sem dizer absolutamente nada, ao mesmo tempo em que é possível escrever
laudas e mais laudas de uma escrita impecável e absolutamente vazia de
propósito. O erudito encalacrado adora promover e participar de reuniões. São
nas reuniões que o encalacrado limpa a voz para defender teses sobre a
influência do esmalte cor-escarlate no dedinho mindinho da mão esquerda em
tempos de seca atmosférica. São nas reuniões que o encalacrado consegue torcer
o seu bigode com as pontinhas dos dedos e demonstrar aos outros companheiros de
encalacratice que o charme de viver está em produzir encontros de tédio. O
encalacrado adora correr atrás do próprio rabo só para provar aos outros o
quanto o seu rabo é digno de ser perseguido por ele próprio. O encalacrado é
comedido, não se presta a esforços inúteis, afinal, já que não é permitido
interferir no movimento de rotação da terra, para que se preocupar? O
encalacrado morre tarde, mas feliz, reconhecido por todos como um emérito
cidadão atador de nós das necessidades públicas.
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