domingo, 30 de setembro de 2012
Acordei gênio!
Acordei com uma única e retumbante certeza: é
hoje o dia que escrevo a minha obra prima! Levantei da cama com a convicção de
que eu era o portador de uma importante missão cujo esforço criativo repassaria
à humanidade um legado de valor inestimável. Nessa manhã, tão logo abandonei o
travesseiro, de alguma forma eu já sabia: aquelas pantufas que impediam o
contato dos meus pés com o chão gelado estavam prestando um precioso serviço
não a qualquer um, mas a um eminente candidato ao Olimpo das artes. É isso! Acordei
gênio! - não que ontem eu fosse um asno claudicante e mentecapto da espécie
mais comum que desfila por aí na hípica vagabunda da vida, longe disso! Mas,
especialmente hoje, eu havia sofrido uma iluminação -, escreveria um livro para
entrar no time dos grandes! O espelho do banheiro, ao avistar meu topete
desarrumado na ocasião do cumprimento das exéquias matinais, já denunciava... (***vejam
os sintomas da genialidade já se fazendo presentes!!! – ‘exéquia’ é um termo
nobilíssimo que só alguns poucos escolhidos tem o domínio intelectual para
empregar e, ainda mais genial!, associá-lo aos rituais higiênicos do
baixo-ventre é o diagnóstico cabal de uma impetuosidade sábia típica das mentes
fora de padrão!) enfim, o espelho do lavabo, numa livre e audaciosa adaptação
da historinha da Branca de Neve, confidenciava-me aos sussurros: ‘Tu serás o
novo ícone da literatura mundial!’ Era um típico topete de gênio aquele! O
topete do escolhido! Dentre tantos exemplares dessa raça de seres pensantes,
justo eu acabei sendo pinçado para ingressar no panteão dos deuses literários!
Ocuparia uma cadeira na Academia Mundial das Letras ao lado de Dostoievski,
Shakespeare e Machado de Assis (Paulo Coelho é a faxineira que tira o pó das
estantes uma vez a cada quinze dias). Quanto orgulho! O café da manhã que se
seguiu irá ficar gravado para sempre na história como o café da manhã que
antecedeu a produção da grande obra! O que diriam aquelas torradas besuntadas
com requeijão se soubessem do prestimoso auxílio que estavam oferecendo ao
emprestar suas propriedades nutritivas aos meus neurônios geniais, verdadeiro
exército de massa cinzenta que em breve revolucionaria com suas sinapses o
mercado editorial mundial? Liguei o rádio para tentar registrar quais notícias
esse dia tão especial se dedicava em transmitir, todas elas ínfimas perante o
grande acontecimento ainda reservado à solidão do meu íntimo. Não é curioso
imaginar que as pessoas travam a própria vida em função de manchetes tão
insignificantes? Não e não! Ainda que o muro de Berlim fosse reconstruído para
depois ser novamente colocado a baixo, ainda que os homens de turbante do Bin
Laden resolvessem bombardear o Cristo Redentor com ultraleves terroristas,
ainda que o Russomanno virasse honesto, ainda assim nada poderia me interromper!
Hoje eu acordei com uma única e irrevogável missão: conceber a minha espectral
obra prima, um pequeno conjunto de páginas escritas por homem, um gigantesco
monumento para o futuro caminho de toda a humanidade. Agora todos em
silêncio... vou começar a pensar no que raios escrever. Todo gênio escolhido
tem momentos de insegurança. Esse é o meu momento de insegurança. To inseguro.
Mas sou um gênio, não duvide... o meu espelho que o diga!
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
A metafísica das calças frouxas...
Saí de casa com a calça frouxa.
Talvez o cinto não tenha cumprido o seu papel, ou então eu emagreci pegando
carona com o Fenômeno, que acaba de entrar pro Medida Certa. Só sei que no meio
de uma elucubração das mais filosóficas, no auge do ‘ser ou não ser eis a
questão’, fui obrigado a puxar o jeans para evitar um diálogo público e
imprevisto com as minhas vergonhas. Não que as minhas vergonhas sejam
vergonhosas, muito pelo contrário, as minhas vergonhas são tratadas a pão-de- ló,
cuido delas com todo esmero para ter alguma coisa com que me orgulhar nessa
vida, ainda que a gravidade torne grave o prognóstico de um futuro que há de
vir mais cedo ou mais tarde. A questão é que quando minha cueca estava prestes
a protagonizar seu discurso à la ‘Bonitinho mas Ordinário’ em plena padaria,
local onde me encontrava em trânsito matinal rumo à labuta dos justos, eu sofri
uma iluminação! Eureca! Eis o que descobri: o homem evoluído veste calças
frouxas! O homem evoluído frequenta constantemente o intervalo entre a descoberta
do Bóson de Higgs e a inescrupulosa tarefa de erguer suas calçolas para evitar
publicar suas vergonhas nos anais – ou bundais – das revistas científicas. Não
confie nunca num sujeito de terno e gravata! O sujeito de terno e gravata anda
impecavelmente ajustado ao seu cinto de couro, nunca passando pela sua cabeça
que existem vergonhas profundas escondidas por detrás de tanto charme executivo.
O terno e a gravata é a armadura dos ímpios, a carapaça dos mentirosos, o
casulo dos blasfemadores. Quem usa terno e gravata é um desavergonhado,
herdeiro dos iluministas pedantes, todos acadêmicos bobinhos que inventaram os
suspensórios justamente para desfilar suas enciclopédias de termos inúteis por
aí. Não é a toa que a Idade Média foi o período mais frutífero da história do
homem, tempos em que os loucos, dementes e poetas amarravam suas ceroulas com
cordinhas vacilantes. Até quando o assunto é religião o elástico frouxo
escorrega com força. Imagine Cristo indo para a cruz de terno e gravata?
Certeza que não subiria aos céus, nem no terceiro dia, quanto menos depois da
posse do Apóstolo Russomanno! Arrisco a dizer que Sócrates proferiu o seu ‘só
sei que nada sei’ na urgência de apanhar sua túnica grega que insistia em lhe
abandonar os seus gambitos filosofais! A filosofia morreu na era da razão, com
todos os seus filósofos protegidos pela ladainha de uma retórica pudica que
escondia a roupa de baixo dos bigodudos. Marx foi um chato pateta, um
desavergonhado que proibiu a especulação capitalista das calças largas. Deu no
que deu: uma revolução abstrata. Tivesse afrouxado a bermuda, teria sido um
gênio. É isso! Os escolhidos, os gênios, os profetas, os inteligentes, todos
eles abrigam em seus armários um conjunto espetacular de calças largas,
ansiosas para lembrar que no fundo, ou melhor, na cintura da vida, nada de
importante pode concorrer e superar a consciência de nossas vergonhas. Saí da
padaria e passei o dia inteiro entre a cueca e a consciência. Quando embarcava
numa nova teoria revolucionária, fruto da minha invejável malhação intelectual,
lá me caiam as calças para alertar-me de que os fundos da casa podem sempre
colocar tudo a perder. É isso! Sou um privilegiado! Descobri o caminho, ou o
tamanho errado, da sabedoria. Vou aposentar todos os meus cintos. Vou afrouxar o
que resta do meu guarda-roupa! Virei um homem evoluído!
terça-feira, 18 de setembro de 2012
O gato, o Lawrence Olivier de bigodes!
O gato é o artista do palco por excelência, o ator dos
atores, o Lawrence Olivier de todos os tempos. Frente ao gato não há Cacilda
Becker ou Paulo Autran que resista. Em cima do tablado é o gato que reina,
enquanto nós, sapiens, naufragamos. O gato olha de soslaio para Édipo e diz:
‘mas que menino mais bobo, matou papai e casou com mamãe!’ Meow! Só um gato
para dar conta da potência trágica de um herói grego! Faça o teste e vá
assistir no teatro a história protagonizada pelo rei de Tebas na pele de um
gato galante. Ator nenhum consegue convencer a mais generosa das plateias com a
famosa cena da perfuração dos olhos. O ator humano se esbugalha em cena, berra,
grita, chora, corta as tripas na tentativa de transmitir o horror da situação e
conclama a audiência para compartilhar da sua interpretação de toureiro com
hemorróidas. O gato não. Com o gato a coisa é bem diferente. O gato é
econômico. O andar do gato já carrega todo um caminhão de emoções contidas num
simples desfilar de patas acolchoadas. O gato é elegante, um mentiroso
profissional que jamais exagera em nada. O gato não dá a mínima para nossas
crises melodramáticas, ao contrário, o gato passa longe do Leblon do Manoel
Carlos e sobe direto ao monte Olimpo. O gato é trágico. O ‘ai de mim’ nada mais
é do que uma triste tentativa humana de traduzir o lamento de um felino grego, proferido
aos ouvidos de Sófocles. Um único ‘meow’ tem a capacidade de derrubar uma
plateia, já a ladainha das frases humanas quase sempre vira uma cantilena
interminável que dói nas orelhas dos ratos e morcegos, habitantes dos
bastidores de todo teatro. Foi depois de ouvir um ‘meow-miau’ que Aristóteles
formatou a sua teoria da função catártica do teatro antigo. Gato nenhum se
permite entrar na mansão do Tufão e da Carminha. Todo gato sabe que novela,
seja ela Mexicana ou Tupiniquim, não está à altura do seu magnífico domínio da
cena. Novelas e séries de TV se dirigem a qualidades artísticas inferiores as
do gato. Cães e humanos cabem perfeitamente na categoria de personagens moldadas
no formato Maria-do-Bairro. Labradores são sempre melodramáticos. Investigue o
curriculum de um labrador e verá que o focinho freqüentou o Studio Fátima
Toledo ou a Escola de Atores da Rede Globo. O gato ri dessa bobagem toda. O
gato sobe ao trono da magnificência dramática, não se rebaixa a figuras
medianas freqüentadoras de padarias. O gato é o proprietário do teatro, nós os
tristes inquilinos. Shakespeare só foi capaz de compor a sua monumental obra
porque afagava um gatão peludo que ronronava no seu colo enquanto escrevia o
‘ser ou não ser [meow] eis a questão’. Se houvesse um teste vocacional que
reunisse homens e gatos, não haveria qualquer chance para nós, humanos
aspirantes à arte de Dionísio. É o gato o dono da ancestral arte do fingimento.
Inevitável persistir. Não há curso de interpretação que nos faça sequer raspar
o talento dramático de um bichano de bigodes longos. Pobres mortais de
consciência desenvolvida! Queimem os métodos, fechem as escolas, tapem os
ouvidos para a tonelada de teorias e... comprem um gato! O gato é o mestre da
cena. O gato, só o gato!
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
O Haiti não é aqui... mas a China é logo ali!
O barateamento da ponte-aérea Pequim-Praça-da-Sé tem ajudado a aumentar a ocorrência de um fenômeno moderno batizado pelos especialistas demográficos com o nome de ‘chineização-da-população-da-terra-da-garoa’. Antes acostumados ao ônibus-leito que cumpria a rota Marco-Polo-Rodoviária-Tietê, os habitantes da terra-do-espetinho-de-escorpião-frito costumavam chegar em menor número a nossa querida cidade. Agora, porém, seduzidos pelos preços mais em conta em razão da concorrência entre as companhias aéreas, não é raro observar congestionamentos homéricos de Boeings 747-400 da Air-Xing-Ling na pista de pouso de Congonhas – muitos dizem que a 23 de Maio enciumou-se ao ver o seu reinado de estacionamento-a-céu-aberto ser ameaçado com um xeque-mate pelos mastodontes do Mao-Tsé-Tung. O fato é: um formigueiro diário Made-in-China passa pelas nossas alfândegas, depenando todo e qualquer free-shop que apareça no meio do caminho. Os gafanhotos do Antigo Testamento caberiam em duas kombis, se comparados ao contingente de olhos puxados que desembarcam religiosamente até nós. Resultado óbvio: é chinês pra tudo quanto é lado! É só sair na rua para dar de cara com um chinês. O fenômeno de chineização da capital da fumaça atingiu tal extremo que medidas jurídicas já começaram a ser tomadas para abolir o tradicional bairro chinês, o sempre fedorento e agridoce China Town. O motivo é mais do que justo, já que não há mais razão para privilegiar um único bairro com o título oriental sendo que a China está literalmente espalhada por toda a Town. Há quem defenda que o antigo quadrilátero-do-rolinho-primavera vire um gueto ao contrário, abrigando agora os legítimos filhos da terra do Padre Anchieta – tremores na bancada dos defensores dos direitos humanos! Contra a separação das raças! Direitos iguais a todos! Nada como um DO-IN chinês no cocuruto para acalmar os nervos e adiar, pelo mesmo por enquanto, a inadiável revolução da Praça-da-Sé-Celestial, eternizada pelos arquivos jornalísticos na foto da figura de um vendedor de churrasco-chinês proibindo a passagem de uma fila de camelôs-blindados! O fato é: espirre prá ver! Um chinês aparece imediatamente lhe desejando ‘saúde’ em mandarim! Tem chinês saindo pelo ladrão. Outro dia estava eu distraído a navegar pela internet – mares até então nunca d’antes ameaçados pela frota do frango-xadrês -, quanto eis que a foto de um Chinesinho brejeiro aparece na minha página do Facebook, pedindo encarecidamente para que eu o aceitasse no meu rol seleto de amigos ocidentais. O que fazer? Recusar seria pior, afinal, quem nunca balançou na base ao ouvir falar da grandiloquente estratégia militar empregada nos tempos da dinastia Ming quando todo o exército Chinês conseguia ocupar o terreno inimigo em não mais do que cinco minutos? Os livros de história não deixam mentir! Quando o negócio é ocupar, a China domina a técnica do arrastão, técnica essa que aos poucos foi sendo transmitida para a torcida do Corinthians, hoje sediada num dos bairros mais chineses da nossa cidade, o bairro de Xangai-Itaquera. Exatamente a mesma técnica de ‘dominô-geral’ é empregada também nas ruas do centro de SP, como o que ocorre rotineiramente na conhecida rua de bugingangas chinesas, grafada pelo nome de 25 de Março. Resolvi não titubear e aceitei o Wai-Chu-Tai como meu brother virtual. Terrível ideia! Na semana seguinte quase toda a minha lista de amizades era composta por chineses, uma legião de amarelos que eu nunca na vida havia travado contato pessoal, mas que lá atracavam em segurança e sem qualquer cerimônia, promovendo uma verdadeira Cruzada chinesa via banda larga. E o incrível aconteceu. Ao lavar o rosto pela manhã, depois de acordar normalmente, notei um leve abaulamento da circunferência ocular de ambos os olhos. Olhei-me no espelho. Espanto! Estava virando eu próprio um Chino! De noite o processo já estava resolvido por completo: agora eu era um legítimo Chinês em terras Paulistas. E uma vez Chinês, sempre Chinês! Como diz o famoso hino do clube rubro-negro Chinês, fundado por chineses-paulistas em terras cariocas – que paulatinamente também vão sofrendo processo orientalizante semelhante. A questão é: o mundo está virando uma China, com chineses saindo pelo ladrão. Muralha da China nenhuma dá conta de impedir a maré-tsunami-de-chineses que diariamente nos engole. Talvez seja necessária uma campanha de Des-Chinização completa do planeta, iniciando com a temporada de caça-ao-chinês. Enquanto isso não acontece, o jeito é programar umas férias na Groenlândia. A Groenlândia, pelo que ouvi falar, ainda não foi invadida pelos chineses... talvez caiba a mim, o novo Marco-Polo-Tupiniquim, essa tarefa de colonização. Mas não fale alto! Não quero seguidores! Só desejo um pouco de paz de espírito, todo chinês recém convertido aos olhos puxados tem direito a um pouco de sossego... São Paulo virou uma China comunista, não dá mais! Vou comprar minha passagem. Groenlândia, aí vou eu!
domingo, 16 de setembro de 2012
O princípio encalacrador da vida...
Viver é encalacrar-se. O sujeito mais admirado nos tempos
que se seguem é o encalacrado. Encalacre-se e verá, será respeitadíssimo,
motivo de admiração e orgulho para seus colegas e familiares. Até mesmo a
sociedade adora render homenagens orgulhosas ao encalacrado filho de sua terra.
O encalacramento é um processo lento e gradual de fabricação de nós cegos à
prova de desatamento que acaba sempre numa região sem retorno, mais conhecida
como beco-sem-saída. O beco-sem-saída é um território altamente desejado pelo
aspirante ao título de encalacrado. Há várias maneiras de trilhar o rumo da
encalacração. Quem compra um carro já está no caminho certo, embora não seja
possível trilhar caminho algum dentro dessa lata de alumínio quente,
especialmente projetada para ser admirada no seu estado de preguiça mórbida,
bem no meio de um congestionamento-monstro. O congestionamento, por isso mesmo,
é uma etapa segura para o sujeito que deseja encalacrar-se profissionalmente. O
encalacrado jamais aceitaria deslizar sem rumo com o vento a lhe bater no
rosto. Não! O encalacrado faz de tudo para não sair do lugar e isso lhe cai
muito bem. No rumo da encalacração é urgente e necessário procriar. Todo
encalacrado exige rebentos que lhe representem no futuro, transmitindo sua
herança genética para sucessores que nada tem a ver com a encalacração de quem
os predestinou a uma futura e próspera encalacração. Um encalacrado nunca se
admite sozinho, muito pelo contrário, a vida de um encalacrado é repleta de
berros, uivos, choramingos, lamentos, risos, gargalhadas em coro. Não há
monólogos na encalacração diária de um encalacrado, apenas elencos gigantescos
que o forçam a sumir no meio do corpo de baile. Faz parte do regime
encalacratório fugir do foco do holofote para botar outro desavisado no alvo
das atenções. Não há maneira de se tornar um legítimo encalacrado se não houver
uma árdua batalha cujo intuito final é a conquista de uma vaga de emprego numa
grande empresa ou numa repartição pública. Todo encalacrado é um ótimo
funcionário. Todo encalacrado sabe que passará a vida inteira apertando
eficientemente os mesmos botões até conseguir chegar à gerência, quando poderá
ensinar aos estagiários-encalacrantes a maneira correta de fazer aquilo que até
um chimpanzé analfabeto saberia executar. Todo encalacrado veste terno e
gravata e se orgulha de passar calor debaixo do sol tropical. O figurino
encalacrante é um ótimo emblema da eficiência encalacratória do seu dono encalacrador.
Todo encalacrado tem um regime alimentar digno da sua fartura monetária. O
encalacrado não economiza garfadas suculentas em gorduras nobres, aumentando a
circunferência da sua pança para que suas tripas internas sejam admiradas pela
junta médica na iminente lipoaspiração escultural. Todo encalacrado sempre se
preocupa com o amanhã, tratando o momento presente como uma vagabunda de
esquina para justamente garantir mais ingredientes encalacratórios num futuro
remoto. O encalacrado também é erudito, instruído na arte de morder e assoprar
para nunca correr o risco de se comprometer perante o julgamento alheio. Existe
toda uma técnica que oferece ao encalacrado a qualidade de dizer um monte de
coisas sem dizer absolutamente nada, ao mesmo tempo em que é possível escrever
laudas e mais laudas de uma escrita impecável e absolutamente vazia de
propósito. O erudito encalacrado adora promover e participar de reuniões. São
nas reuniões que o encalacrado limpa a voz para defender teses sobre a
influência do esmalte cor-escarlate no dedinho mindinho da mão esquerda em
tempos de seca atmosférica. São nas reuniões que o encalacrado consegue torcer
o seu bigode com as pontinhas dos dedos e demonstrar aos outros companheiros de
encalacratice que o charme de viver está em produzir encontros de tédio. O
encalacrado adora correr atrás do próprio rabo só para provar aos outros o
quanto o seu rabo é digno de ser perseguido por ele próprio. O encalacrado é
comedido, não se presta a esforços inúteis, afinal, já que não é permitido
interferir no movimento de rotação da terra, para que se preocupar? O
encalacrado morre tarde, mas feliz, reconhecido por todos como um emérito
cidadão atador de nós das necessidades públicas.
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
Enxuguem as lágrimas, caminhar é sempre mais interessante!
Não acredito que o papel do artista seja esmiuçar as suas entranhas emocionais para oferecê-las ao espectador, isso mais parece com um exercício autoritário de auto aceitação, distante de qualquer generosidade poética. O artista, ao contrário, deve sumir, desaparecer, evaporar, fugir do seu íntimo e abrir espaço para deixar passar a obra que deseja comunicar. O artista deve forçosamente estar à se
rviço de algo maior do que a si próprio, e toda tentativa de aproximação emotiva é um passo na direção de reduzir a poesia. O artista, para manter plena a sua arte, nunca deve encontrar-se naquilo que quer dizer, deve permanecer estrangeiro, longe para produzir intervalos. Os intervalos são mais importantes do que qualquer coisa. O vácuo, o silêncio, a pausa, a incomunicabilidade entre artista e obra é tão ou mais importante que a sua assimilação interna. Essas fissuras vazias não querem dizer que o artista está isento daquilo que faz, apartado de envolvimento pessoal. Ao contrário. É a distância que o permite conduzir. E conduzir é infinitamente mais emocionante do que perder-se na lágrima que brota de si próprio. Conduzir exige chamar o espectador para uma jornada. Não há jornada se não há a abertura de espaços para caminhar. A jornada é o que conta. O resto é recheio vaidoso sem valor algum.
To be or not to be... ouçam a barata!
O homem é covarde, um covarde de firma reconhecida no cartório,
covarde de carteirinha. Numa disputa entre covardes o homem concorreria consigo
próprio. Não há concorrentes à altura do homem em matéria de covardia. A
covardia é um atributo humano, animais não são covardes, os bichos podem ser frágeis,
fracos, doentes, mas não covardes. Covarde só o homem pode ser. O homem é
covarde porque se diz corajoso, fingindo ser muito maior do que de fato é. A
consciência, essa voz metafísica instalada dentro da cabeça de cada um de nós e
que não se cansa em repetir a famosa ladainha ‘penso, logo existo’ é a responsável
por toda a farsa. Maldito Descartes e toda a corja de iluministas! Iluminaram o
nosso ego mentiroso e covarde, e só! Os loucos da Idade Média eram muito mais
sinceros e apaixonantes que os seus sucessores da era da razão. A razão trouxe
junto a consciência. A consciência é o silicone moral, uma prótese que tenta a
todo custo levantar a auto-estima para provar que a nossa existência não é um
mero acidente, mas produto de uma missão altamente importante que servirá de
exemplo primoroso aos nossos semelhantes. Para justificar o quão covardes
somos, criamos a ideia de Deus e todos os personagens que dão suporte a esse
herói invisível que no auge do seu tédio celestial resolveu brincar de criar
avatares para matar o tempo. Somos tão covardes que precisamos acreditar que
somos únicos. Únicos e humildes, porque faz parte da covardia se colocar na
posição de vítima do mundo, de ovelha do rebanho, triste coadjuvante num enredo
cujo protagonista é o outro. Covardia e coragem são faces da mesma moeda. Moeda
escondida dentro do bolso humano. A barata é a prova irrefutável de que somos
todos covardes. Na intimidade do seu lar, o mais invejável dos representantes
humanos hesita quando avista um baratão atravessando o chão de sua residência –
não é a toa que a indústria química lança a cada ano um novo spray anti-barata,
tentativas sempre frustradas de se fazer prevalecer sobre o ser abominável do
esgoto. Inclua a cena do Rambo sendo pego desprevenido por uma barata que faz
coceguinhas no seu pé de salvador da pátria e ele imediatamente larga a
metralhadora para virar apresentador de programa de fofoca nas tardes da
televisão. Isso sem contar as inúmeras marcas de chinelos e tamancos que, a
rigor, não servem tanto para calçar os pés, mas para oferecer uma distância
segura entre a mão do sujeito e o inimigo de antenas que se espreita
cambaleante pelas frestas do lar. Se a barata tiver asas e puder voar, então, é
como se toda a dignidade ética e moral da nossa raça fosse imediatamente embora
pelo ralo. Nenhum mestre de academia sobrevive ao vôo de uma barata tropical. Se
Gregor Samsa acordasse no seu quarto transformado não numa barata, mas numa
lagartixa, a história de Kafka perderia toda a força. A barata é uma afronta ao
destino humano, o último estágio da decência que supera aquilo que ambicionamos
ser. As unhas são outro índice da nossa covardia. Basta ver as unhas de um
homem para comprovar. O leão só é o senhor da selva porque carrega junto às
suas patas garras enormes. Leve o bicho numa manicure e ele voltará para seu
habitat mais manso que um gatinho de pelúcia. Hamlet não consegue agir porque
suas unhas são curtas, podadas na mesma medida da sua elegância intelectual. Complexo
de Wolverine – Oh maldita queratina que não me deixa vingar a morte de papai! É
isso. Somos todos covardes. Unha, barata e consciência... uma combinação improvável,
mas que desmancha toda a petulância moral que nos serve de figurino para
brilhar em cima do palco da vida.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Do pó viemos, ao pó retornaremos.
O destino de São Paulo está selado, um futuro nebuloso, um
futuro poeirento e funesto. No dia 21 de dezembro, data do próximo apocalipse –
anote no seu smartphone para não correr o risco de perder a celebração -, a
cidade da garoa sumirá por completo debaixo de toneladas e mais toneladas de pó
– passe o dedo na sua estante de livros e perceberá os sinais concretos dessa
tragédia iminente. Não, caro amigo de infortúnio, não adianta ligar para sua
faxineira, ela pouco teria a fazer para nos ajudar. O pó vencerá! Do pó viemos,
ao pó retornaremos. O pó na estante é a primeira trombeta do apocalipse segundo
São Paulo. Ainda que as forças armadas empunhem o conjunto total de aspiradores
de pó à venda nas Casas Bahia, ainda assim, o pó triunfará! Será o fim. Seremos
todos sepultados vivos num piscar de olhos, sem nenhum aviso prévio! Nada de
hecatombe hollywoodiana com direito a terremoto engolindo o Monumento às
Bandeiras, labaredas de fogo queimando as capivaras do rio Tietê ou chuva de
meteoro inundando de granito o já afogado Jardim Pantanal... nada disso! O
enredo melodramático da nossa triste existência terá uma conclusão frugal, um
‘pronto cabô’ sem clímax nenhum, todos pegos desprevenidos pela força
devastadora da poeira assassina. São Paulo entrará para a história como a nova
Pompéia e escavações futuras revelarão nossos corpos petrificados nas poses
mais prosaicas, indicando que o curso da vida corria normalmente no instante em
que a nuvem negra baixava seu manto de morte sobre nós. Não, companheiro de
dor, não adianta gastar dinheiro com ventiladores ou circuladores de ar, ainda
que fosse possível instalar uma turbina de Boeing na sua sala, ainda assim o pó
daria conta de se esgueirar por entre as frestas do seu humilde e asséptico
lar! Passe o dedo em cima da televisão e verá! O pó em cima da televisão é a
segunda trombeta do apocalipse segundo São Paulo. Mas não se entregue,
lacrimejante irmão! Mesmo fossilizado, há que se preservar o respeito! O
passado de glória da raça humana tem o dever de, ao menos, servir de molde para
notáveis estátuas de pedra a serem expostas nos museus dos séculos seguintes!
Que o diga o peladão Davi de Michelangelo, pego desprevenido pelas cinzas do
Vesúvio enquanto interpretava uma peça antropofágica do Zé Celso. Portanto,
engula o soluço e vá ensaiando qual estátua humana quererá deixar como legado
para as gerações vindouras. Eu já decidi a minha! Vou ser desenterrado de
joelhos e com uma bíblia na mão, para provar que em vida fui um digno devoto do
Senhor e cabo eleitoral do Russomanno. Ah, triste presságio! Tanto tempo
trabalhando na escolha das palavras do meu nobre epitáfio e agora terei de me
contentar com um prosaico: COF! COF! COF! Foi Ivete Sangalo a primeira a nos
alertar sobre o epílogo dos sapiens. O ‘levantou poeira’ da musa do axé baiano
era um alarme profético que poucos levaram a sério. Por detrás do gingado da
arretada escondia-se uma Nostradamus-do-Acarajé! E não demos qualquer atenção. O
pó, sempre o pó a espreitar o nosso destino... e nós menosprezando a sua força
de extermínio. Oh pó! Minha consciência afunda-se em remorso. Passe a mão pela
consciência e verá. O pó de cima da consciência é a terceira e última trombeta
do apocalipse segundo São Paulo.
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Campanha contra os acentos!
Sou contra os acentos! Não aquele lá debaixo, escrito com dois ‘ss’, que acomoda o vosso traseiro quando a fadiga aperta, mas aquele lá de cima, que cobre com chapeuzinho, cobrinha, pinguinhos e toda espécie de tracinhos as vogais do nosso alfabeto tupiniquim. Se essa língua fosse minha, eu mandava arrancar a espinha aguda que fere o seu pobre ‘i’, aliás, aproveitando o embalo reformador, pavimentaria o limite superior da letra ‘i’ para que o pinguinho evaporasse também, virando um ‘i’ asfáltico uno e liso nas suas dimensões retilíneas, um ‘i’ sem buracos ou saliências, um verdadeiro ‘I’ sóbrio e digno. Todo acento gramatical é uma rebarba inútil, um topete rebelde a ser podado na barbearia do bom senso! O que é um til (~) senão um apêndice dolorido que faz entortar a caneta e o lápis, atrasando a digitação da palavra no teclado do computador, uma vez que a cobrinha egocêntrica exige um clicar só dela, às vezes combinado com o pressionar de outra tecla em concomitância, e toda essa operação para quê, minha gente? Somente para atrasar a nossa vida! Campanha ‘Renove a velha e ondulada Mamãe por uma nova Mamae’! Tudo começou com a maldita crase, com uma dificuldade tremenda para se saber para que lado essa desgraçada aponta – para a esquerda ou para a direita do ‘a’? Como nunca cheguei a um consenso apropriado sobre a filosófica questão, não arrisco mais e grafo a bendita dos dois lados, para não correr o risco de errar, exemplo: ‘hoje eu fui `a´ farmácia e comprei o remédio que tanto procurava’. Depois dessa revolta acentuada, resolvi curar-me por completo da dor de cabeça sintática e desacentuar tudo – é preciso cortar o mal pela raiz, alforriar as nossas vogais, dar curso ao pensamento sem que haja satélites zombeteiros interferindo no fluxo límpido das ideias (a velha ‘idéia’ já perdeu o acento! Vejam como é bom renovar as ideias!). Para quê achapelar com circunflexos os nossos ‘es’, ‘os’ e ‘as’? Essa cobertura em forma de toldo-retorcido-de-padaria é uma afronta à dignidade das nossas vogais! Ao cobri-las dessa maneira, estamos dizendo: ‘Ei! Não saia por aí ao relento com o cocuruto descoberto! Proteja-se! Leve esse gorrinho e não seja teimoso, senão pegará uma constipação de tapar o narigo!’ Ora essa! Nossa língua já está madura o suficiente para se desgarrar dessa mimação toda. O trema já se foi, sentou-se no assento dos acentos aposentados... Vamos dar o devido descanso ao restante da parentada!
Vota em mim? Diz que vota, diz?
Vou me candidatar a um cargo público para resolver os seus
problemas, afinal, sou um candidato-do-bem. Todo candidato-do-bem é bom, bom,
bonito e cheiroso. Atualmente não existe nenhum candidato-do-bem, só eu. O
resto são sósias que fingem uma bondade que não carregam, ou melhor, quer
dizer, ou pior, são candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro. Cuidado com os
candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro! Normalmente esse tipo de candidato se
esconde atrás de um personagem do bem – o cordeiro, mas não se deixe ludibriar
– são lobos! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro são maus, terríveis, é
certo que penteiam o cabelo para o lado certo, são bonitos e cheirosos
exatamente como eu, que sou do bem, mas não se deixe ludibriar, são do mau! Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro
são todos uma matilha de predadores vorazes que jogam suas lorotas como iscas
sedutoras para que você, uma rã distraída coaxando no brejo da inocência, seja
catapultada para dentro de suas mandíbulas ferinas! Cuidado com os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro!
Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro sabem falar, tem uma retórica afiada,
pronta para lhe enganar. Os candidatos-do-bem, ops, quer dizer, O
candidato-do-bem, porque só existe um, e esse um sou eu, também sabem falar que
é uma maravilha, mas falam para o seu bem, não para o seu mau. Não existe nenhum
candidato-do-bem, só eu. Você sabe disso, por isso confia em mim. Meu passado é
idôneo, de ficha limpa, limpíssima, translúcida! Cuidado com os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro!
Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro também dizem que são idôneos, limpos,
limpíssimos, translúcidos... tudo mentira! Quer dizer, pode até ser verdade,
mas o essencial é que todos são do mau, não do bem, como eu. Só eu sou do bem e
você sabe disso, não sabe? (Diz que sabe?) Mas como a política é algo sério e
complexo, há que se provar tudo o que se diz. Só um candidato-do-bem, como eu,
pode se permitir auscultar seu próprio interior sem correr o risco de encontrar
qualquer carocinho maligno. Mas cuidado! Como descobrir quem é do bem e que é
do mau? Acreditando em mim, que sou do bem. E a prova de que falo a verdade está
impressa aqui nesses documentos que mostram, como podem ver, que eu sou inocente
em todas as acusações já feitas e não feitas a meu respeito, inclusive, como os
lobos-em-pele-de-cordeiro chegaram a cogitar, não tenho relação nenhuma com o
pecado original, nunca tive no meu quintal nenhuma árvore do conhecimento do
bem e do mau, já que, como todos sabem, sou do bem. Não conheço e nunca tive
contato com nenhuma Eva ou Adão. Cuidado com candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro!
Os candidatos-lobo-em-pele-de-cordeiro normalmente mostram as mesmas provas que
eu, que sou do bem, mas não se deixe enganar – são do mau! Vote em mim, que sou
do bem! (Diz que vota?)
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
A Capivara se impressiona com o impressionista Monet!
Sucumbi à pressão e fui ver os impressionistas no centro de
SP. Escolhi minha melhor roupa para impressionar e... tcharãn... impressionei!
Olhava pro Monet que olhava pra mim e ambos faziam aquela cara de
im-pre-ssio-nan-te! Eu porque admirava os lindos quadros impressionistas do
pintor, ele porque ficou impressionado com a minha expressão de filósofo do
impressionismo tardio. Já reparou que nessas ocasiões, de grandes exposições
cujos autores são artistas renomados, há um afluxo alucinante de Phd’s em vanguardas-emergentes-do-contexto-sócio-geo-político-da-conjuntura-mundial-do-pós-guerra?
É quase proibido ser uma anta e ainda assim pedir ingresso num desses eventos,
uma capivara sim! – porque as capivaras tem a sorte de carregar aquela
expressão ‘un passant’ típica do ruminante que não se impressiona com nada do
que vê, embora entenda perfeitamente toda a cronologia impressionista do
movimento dos artistas em questão. Nunca desconfiou porque razão legiões de
capivaras circulam as margens do Tietê e do Pinheiros? Simples, porque os
nossos dois queridos rios formam juntos a maior obra abstracionista e fedorenta
– porque toda arte que se quer moderna deve em algum momento exalar um odor
nauseabundo, nem que seja um ligeiro budum-poético - que nossa capital da fumaça
já produziu. Eu era uma capivara declarada na exposição dos impressionistas. Uma
capivara-cult. Uma capivara assídua do espaço Unibanco, que veste boina e
chinelo e sabe tudo do neorrealismo italiano, além de ser fã dos filmes do
Godard. Mas não me pressione a mudar de assunto! Se eu sou uma capivara
assumida, naquele instante eu não era uma capivara da 7ª arte, mas uma capivara
das artes plásticas, impressionada com os impressionistas. É por isso que eu
não sou afeito a visitas em museus, prefiro preservar minha porção capivara
para momentos campestres, em que é possível mastigar a mais fina alfafa
interiorana, capivaras urbanas são quase sempre contaminadas pelo ar da
erudição-capivarial, aquela sapiência zoomórfica que domina as cátedras
acadêmicas dos orientadores de doutorado. Prefiro ir ao teatro. Na platéia do
teatro as antas são bem vindas. No teatro eu sou uma anta. As antas no teatro
não correm o risco de sofrer qualquer espécie de bullying-intelectual. O melhor
público é o que se assume ignorante, tapado, desorientado... ainda que o
sujeito seja uma Toupeira-Shakespeariana – um grau além da antice esperada -, o
palco é tão potente que dará conta de arrebatá-lo para dentro da história do
bardo inglês. Nenhum pós-doc sobrevive a um espetáculo de teatro, o maior dos
instruídos vira mais um numa audiência repleta de espectadores transparentes.
Mas a despeito de tudo isso, vale a pena ver o Monet e todo o resto dos
impressionistas, só tome cuidado para não tropeçar nas montanhas de capim que
vez ou outra se formam durante o trajeto das capivaras...
domingo, 9 de setembro de 2012
O Focinho empreendedor...
Entre os animais houve um rateio de profissões e coube a
pomba o papel de lixeiro do mundo. Pobre coitada da pombinha que tem de
sobrevoar as metrópoles malcheirosas do mundo em cumprimento ao seu árduo
ofício. Mas a natureza é sábia e Darwin, chefe-mor do Poupatempo-zoológico, não
titubeou em carimbar a carteira de trabalho de cada bicho de acordo com o
focinho do candidato. E não é que ele tinha razão? Já imaginou um albatroz
elegantemente estacionado no topo da Catedral da Sé só à espera de uma lasca de
churrasco-grego atirada inadvertidamente ao chão? No instante em que esse
boing-penoso alçasse vôo em direção ao lanche desprezado, todos os camelôs
teriam forçosamente que recolher suas barracas made-in-Ponte-da-Amizade sob o
risco de darem adeus às suas mercadorias, engolidas pela lufada de ar das asas
do gigante destemido. O rei dos animais não poderia ser outro senão o leão, a
juba é que lhe dá esse direito! Tose o colarinho de um leão num pet shop da
esquina e ele voltará para o seu lar no máximo como um motoboy a serviço do
rinoceronte. Imagine se a girafa, com aquela cara de Mister Bean de pescoço
avantajado, poderia pleitear um cargo de respeito na repartição da savana
africana? Jamais! Aliás, é desse estigma que padece a hiena. Teria de tudo para
virar um bicho de dignidade irreparável não fosse sua risada de taquara rachada.
O cachorro só é o melhor amigo do homem porque não fala, no instante em que um
totó abrir a boca para comentar sobre as perspectivas em torno do futuro dos
acusados do mensalão ele perderá seu emprego de Sancho Pança da raça dos
sapiens. Na empresa da terra, os animais não falseiam, desempenham a tarefa que
lhes foi entregue e isso basta. Diferente de nós, humanos, que estamos o tempo
inteiro atrás de uma revisão a respeito do que somos ou poderíamos vir a ser. Essa
coisa chamada consciência vive nos pregando demissões por justa causa, nunca
satisfeita em ser o que é, porque já essa certeza – a de ser alguém, nos escapa
a cada instante. A regra é fingir, falsear, driblar, escamotear, constantemente
num exercício camaleônico de busca pelo emprego ideal que se encaixe na perfeição
dos nossos desejos. Nunca será encontrado. Darwin é o nosso inimigo mortal, não
há ocupação que combine com esse focinho empreendedor.
sábado, 8 de setembro de 2012
Somente o clips prevalecerá!
O clips prevalecerá! Para além de todos os esforços humanos,
será o clips o herdeiro da nossa mais bem sucedida passagem pela terra. O
sujeito que inventou o clips é um gênio, receberá como recompensa o merecido
descanso no reino dos escolhidos, sim, porque na corte do juízo final deve
haver um espaço importante para avaliar as patentes, e, nesse caso, por mais
libidinosa que tenha sido a vida do criador do clips, o autor desse pequeno
objeto metálico retorcido será salvo, deixando a nós, simples mortais incapazes
de inventar algo de grandeza comparável, entregues ao limbo fedorento do
capeta. Imagine a seguinte cena – o pai do liquidificador tentando convencer o
Todo Poderoso a lhe dar uma quitinete no paraíso, alegando que seu filho de pás
metálicas, motor elétrico e jarra acrílica foi um fiel servidor dos interesses
mundanos... pobrezinho, será triturado como uma vitamina de orgulho pecaminoso
no instante em que se deparar com seu concorrente maior ao posto de jardineiro
do Éden: o artista do clips! Insisto, nada nem ninguém poderá fazer frente ao
insuperável poder agregador de um clips, que embora um: clipe, já não se entrega ao singular, virando vários em um, exatamente como os peixes e pães multiplicados pelo filho redentor do Pai Celeste. Amém ao Clips, agora com maiúscula! Shakespeare só foi Shakespeare porque
em algum momento um clips medieval reuniu suas páginas poéticas num único
volume, evitando o que seria a maior tragédia não escrita de todos os tempos: A
revoada de palavras ao vento do esquecimento eterno... Hamlet se tornaria um
menino bobo em comparação a tamanho desastre, aliás, Hamlet não existiria,
assim como nenhuma dúvida metafísica poderia habitar em nós caso o clips não
tivesse sido inventado. Por que acham que Sócrates foi condenado a tomar
cicuta? Justamente porque o barbudo se recusava a por no papel aquilo que
pensava, insultando o clips como objeto dispensável às necessidades humanas....
veredito? Um processo em praça pública que o levou a morte, todo
circunstanciado em laudas e mais laudas, unidas de que maneira? Por um clips
grego, é claro. Pobre dos atores, poetas que desprendem o verbo da escrita,
creditando à garganta a sua potencia encantatória. Serão todos esquecidos.
Somente o clips prevalecerá! Nas futuras escavações, será o fóssil do clips que
testemunhará a nosso favor...
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
O Banheiro é o berço da filosofia...
O banheiro é o berço da filosofia, lugar de elucubrações
elaboradíssimas, arrisco a dizer que o ‘conhece-te a ti mesmo’ surgiu quando
perguntaram a Sócrates qual shampoo usar na hora do banho, o de cabelos secos
encaracolados, ou o destinado a cabeleira lisa passada na chapinha? E eis que o
filósofo devolve a batata quente ao ensaboado inquiridor: ‘conhece-te a ti mesmo
e saberás qual escolher, Dove reparador de pontas secas ou Pantene nutrição
total’; o trecho final foi surrupiado para dar a entender que a nossa filosofia
sempre foi fundamentada em temas metafísicos de seriedade suprema, mas de
metafísicos e sérios não temos nada, só a audácia de acharmos que somos
superiores a qualquer outra espécie que nunca teve de decorar a fórmula de
báscara para passar de ano no maldito ensino médio, ou fingir interesse no
julgamento do mensalão para justificar uma dignidade que nunca existiu em
nenhum de nós – às vezes me dá uma vontade louca de ter nascido um ouriço nas
Bahamas, um ouriço nas Bahamas tem a vida melhor do que a de qualquer um de
nós, mergulhado em tranqüilas águas quentes sem precisar se preocupar com o
Russomanno prefeito de SP ou mesmo em aprender logaritmo para provar aos
crustáceos circundantes de que ouriço que é ouriço sabe honrar os espinhos pontudos
que carrega... definitivamente um ouriço nas Bahamas tem uma vida melhor que a
nossa, freqüentadores de banheiros metafísicos. Mas voltemos ao banheiro. Hoje
de manhã tive uma experiência digna de nota, escovei os dentes com a pasta
close-up refrescância total sabor tutti-frutti, um bálsamo dos sabores bucais
que até agora desconhecia. Já reparou que a vida é assim mesmo? Alguns se
dedicam anos a fio dentro de um laboratório para encontrar o sabor exato do
tuttu-frutti dental (o hortelã-eucalípto é outra história!) de modo que você
sinta o prazer de pertencer a uma raça que se preocupa com tudo, até mesmo para
você ter o direito de não precisar se preocupar com nada, e é justamente nessa
ponta que eu me estabeleço. Nesse mundo de alquimistas das pequenas coisas eu
me coloco na posição de filósofo comedor de churrasco na laje, os outros que se
virem para inventar um fio dental talentoso que faça voar o resto de carne que
por ventura vier a estacionar nas frestas da minha dentadura... e é claro que
depois haverá sempre um banheiro metafísico com uma pasta dental saborosa à
minha espera. Às vezes eu tenho uma dó tremenda dos ouriços das Bahamas que não
podem desfrutar dos mesmos prazeres mundanos que eu...
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
Ode ao umidificador...
Ganhei um umidificador de ar e minha vida mudou... em dias secos, ligo o meu umidificador; em dias não tão secos, também ligo o meu umidificador; em dias nublados, por que não ligar o meu umidificador? Já que toda hora é hora de ligar o seu umidificador, eu também ligo o meu umidificador em dias nublados; mesmo quando o mundo está virando um pão bolorento de tanta umidade, eu faço questão de ligar o meu umidificador. Umidificadores deveriam vir dentro da cesta básica, afinal, mesmo com o apocalipse batendo à porta, aquela fumacinha gelada e branca parece dizer: 'Ei, sorria, tá tudo bem, olha que delícia é a vida!' Parei com a terapia, agora é o meu umidificador que me ouve quando deito no divã...
A batalha das miudezas diárias...
Meditando sobre os dissabores dessa nossa triste vida, cheguei à conclusão de que vencer uma guerra é infinitamente mais fácil do que lidar com os pequenos entraves do cotidiano. Por exemplo, ontem estacionei meu carro bem próximo de uma pilastra, já imaginando que esse meu shape de faquir-do-rio-Ganges daria conta de se esgueirar para fora sem maiores problemas. Ledo engano... com metade do corpo já à salvo, eis que um pé resiste à tentação de abandonar o veículo e se engancha no vão entre a porta e a cadeira do motorista... ao tentar livrar o bendito cujo, meu bastonete de manteiga de cacau cai do bolso e rola galhofeiro para debaixo do automóvel (pequeno à parte: resgatar esse objeto era motivo de primeira ordem, tendo em vista que um cactus do Saara tem a pele mais sedosa e hidratada que a nossa, habitantes da capital da fumaça)... continuando, livro o pé e me abaixo para apanhar a manteiga fugidia e é aí que a mochila resolve despencar das minhas costas e espalhar todo o seu conteúdo no chão da garagem. Subo vivo ao meu apartamento e quando abro a porta a maldita maçaneta sai na minha mão... nem Winston Churchill saberia como consertar essa pequena peça da engenharia doméstica. Morrendo de fome, tento abrir um vidro de palmito que deve ter sido lacrado na época da santa ceia, porque mesmo evocando fervorosamente o espírito santo (ou o preto-velho do candomblé) a coisa insistia em permanecer fechada... resumindo, é muito mais fácil decolar no Enola-Gay e lançar uma bomba atômica no cocuruto dos comedores-de-sushi do que enfrentar a gincana diária da vida...
Marcha contra os pintassilgos...
Tem um maldito pintassilgo, ou o que quer que o valha, que insiste em pousar numa árvore próxima à minha janela para diariamente me convocar ao serviço de feirante antes mesmo do seu parente galo acordar. Já tentei de todas as maneiras avisar o desgraçado do pintassilgo, ou o que quer que o valha, de que feirante é a galinha-da-sua-mãe-me-deixe-do
é galinácea e sim herdeira das aves agourentas do inferno! Ando bolando um plano para abater o tal do pintassilgo, ou o que quer que o valha, e antes que a APDP - Associação de Proteção aos Direitos do Pintassilgo - venha me processar por crime contra à natureza, faço questão de redigir um convite escrito de próprio punho para que todos os defensores do pintassilgo desse mundo repousem uma noite no meu quarto para sentir na própria pele o que é ser intimado a carregar no lombo uma caixa de couve no CEASA, só peço que haja certa organização nesse procedimento para que minha humilde residência não se transforme na nova Aparecida do Norte, com legiões de fiéis ao pintassilgo vindo acampar em cima do meu colchão. Além do mais, há que se preservar a dignidade da raça humana, raça essa que trouxe aos seu pares figuras ilustres tais como Aristóteles, Sócrates, Ronaldinho Gaúcho e Gretchen, nomes infinitamente superiores à toda cadeia de pintassilgos que já voaram por esses ares esfumaçados. Portanto, chega de me sentir o Pato Donald tentando roncar feliz e agarrado ao seu travesseiro, vou seguir o conselho de Hamlet: 'o mundo está fora dos eixos. Maldito o dia em que eu nasci para pô-lo no lugar!'...
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