A chegada da Naomi não foi algo programado. Num determinado
dia, acordei com a convicção de por fim à hegemonia da dinastia dos pastores
alemães, raça de focinhos altivos que durante quase toda a minha infância
reinaram absolutos no quintal de minha casa. Saí em busca de um labrador. Seria
um labrador preto, ou melhor, uma labradora preta. Sempre gostei dos cães
pretos, e as fêmeas me parecem mais espertas e carinhosas que os machos. Estava
decidido! Uma labradora preta cujo nome seria Naomi Campbell - homenagem
protocolar à modelo inglesa de mesma cor -, era a futura, embora ainda
desconhecida, mais nova moradora da Rua João Carlos de Almeida. Encontrei com a
Naomi rapidamente, num bairro próximo à minha residência. Era o penúltimo
filhote de uma ninhada que eu não conheci, já que todo o restante da ninhada já
havia sido vendida. A Naomi estava lá, brincando com o seu irmãozinho, ambos
parecendo dois torrões de carvão orelhudo. A chegada de um novo bicho numa casa
é sempre traumática, principalmente na ocasião em que eu enfiei a Naomi – eu a
trouxera de surpresa, sem pedir o aval de meus pais. Ainda que a ideia inicial
seja rejeitar um novo filhote de cachorro (os motivos podem ser os mais
variados e plenamente justificáveis) ninguém consegue resistir por muito tempo
ao olhar de um filhote de labrador. Minha mãe estava na cozinha quando apareci
com a Naomi no colo, ela toda orelhuda, lambendo cada centímetro que conseguia
do meu corpo. Minha mãe soltou uma interjeição... e pronto! Naomi já estava
aceita. Terminada a apresentação aos humanos, era hora de Loys Lane, nossa
pastora alemã, conhecer aquele pedaço de focinho africano. Não houve grandes
contendas, mas era visível o semblante desconfiado da anfitriã-peluda, já
articulando medidas urgentes com o intuito de evitar a improvável, porém
iminente, queda de todo o seu império austro-húngaro já há anos consolidado
abaixo dos trópicos. Não me lembro de todos os detalhes que marcaram a passagem
da Naomi por minha casa, mas o que sei é que tive uma experiência completamente
diferente com ela, uma camaradagem especial que até então cachorro nenhum havia
me oferecido. O labrador é diferente do pastor alemão. O labrador deve ter sido
concebido pelo Todo Poderoso depois da criação de todas as suas obras
magnânimas, no meio da pasmaceira do sétimo dia, justamente para que o bicho
lhe fizesse companhia apoiando o focinho nos seus digníssimos pés cansados. O
labrador é uma espécie de Bartelby de quatro patas, muito parecido com esse
personagem de Herman Melville que ficou famoso na história da literatura por
evitar se sujeitar às ordens dos outros, preferindo apostar na sua preguiça
congênita. O labrador, diferente do pastor alemão, não tem as suas orelhas em
forma de radar, prontas para detectar o invasor que se aproxima. Bastava a
campainha de casa soar para a soldado Loys Lane fazer uso de toda a sua
experiência militar e correr em disparada com seu uniforme felpudo em direção
ao front da porta de entrada, enquanto que a Naomi oferecia como reação no
máximo um ronco e uma esticada preguiçosa de pernas, dizendo: ‘relaxa, gente...
não há de ser nada’. As orelhas do labrador são caídas, o que lhe confere um
olhar relaxado e tranqüilo, típica fisionomia do sujeito bonachão que quer tão somente
fazer amigos. Naomi não se metia em encrenca nenhuma. Quando alguma confusão se
armava, seja ela de qual natureza fosse, Naomi dava um jeito de se distanciar,
para lá de longe lançar a sua famosa expressão de quem diz: ‘gente... pra quê
isso?’. Naomi era a representante da ONU na minha casa. Foi pelo intermédio
dela que os meus gatos (sim! Além dos cachorros também havia gatos) resolveram
interromper a versão peluda da guerra Israel-Palestina para, num arroubo de
coragem pacifista de fazer inveja ao Mahatma Gandhi, empreender jornada até o colchão
dos cachorros numa noite fria... a partir desse dia, os gatos passaram a
utilizar a barriga da Naomi para pegar no sono, subindo e descendo como numa
gangorra impulsionada pela respiração daquele focinho avantajado. Foram 13 anos
de convivência com a Naomi, um cachorro que me ensinou que a vida é um negócio
extremamente simples, na grande maioria das vezes complicado por nosso próprio
esforço. Naomi adorava simplesmente estar perto de alguém, e, lá no seu canto,
adormecia. Nunca recusava coçadas na barriga e uma boa refeição significava o
prenúncio de uma soneca de valer à pena. Era inteligentíssima, só não falava
porque fez um pacto comigo de nunca abrir a boca para dizer besteiras – esse
departamento era reservado somente ao dono -, e assim, no alto da sua sapiência
canina, soube permanecer em silêncio até a sua morte há dois dias. Naomi
adorava passear, juntos desbravamos o bairro de Interlagos por caminhos que eu
a pé, sozinho, nunca havia me aventurado. Gostava tanto de passear que aprendeu
a não precisar da coleira, muito menos da guia... sabia perfeitamente que
aquele era um ritual sem qualquer necessidade de repressão, bastando um assobio
do seu dono para que se juntasse ao meu lado. Ela indicava o caminho a seguir,
eu a acompanhava. Conversávamos no silêncio, e não foram poucas às vezes em que
passei longas horas a escutá-la. Nietzsche disse que a vida sem a música seria
um equívoco... do alto dessa minha filosofia-de-caixa-de-fósforo, acrescento
humildemente: a vida sem os animais seria um retumbante equívoco... condenados
que seríamos a conviver integralmente apenas com nossos companheiros de raça.
Obrigadíssimo Naomi! Fique bem onde está.
Linda crõnica! Gosto de pensar Deus fazendo caninos no sétimo dia!
ResponderExcluir