segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Não há crime maior que acostumar-se à vida!


O maior crime que existe nessa vida é acostumar-se ao fato de se estar vivo. Cuidado ao sair de casa! Há uma quantidade incrível desses exemplares esquisitos caminhando pelas ruas, bastando dobrar a esquina para dar de cara com um deles. Quanta gente inflando impunemente seus pulmões! Quanta gente vivendo como se viver fosse a coisa mais natural do mundo! Quanta gente obedecendo à rotina de dormir-acordar-dormir até que o sono reivindique sua eternidade! Todos criminosos! Para dar conta de tantos deliquentes haveria a necessidade de construir uma penitenciária de porte continental, com o perigo de ainda assim deixar de fora um país inteiro de candidatos a inquilinos. É impressionante como a vida é rapidamente absorvida por essa grande maioria de meliantes, todos atribuladíssimos em sustentar a mentira de que viver é uma coisa boa. Quantos são aqueles que acham normal embarcar numa aventura fadada ao fracasso, fazendo de suas curtas temporadas de sucesso uma gincana idiota de afazeres sem propósito! Que espécie de DNA é esse que age sobre nós transformando o absurdo em algo normal? E é ao acreditar nessa normalidade fantasiosa que se comete o monumental pecado de não perceber que se há algo de equivocado na vida essa coisa é a própria vida. Ah! Com que rapidez as pessoas se acostumam a fazer o que fazem, formando naturalmente um exército humano de advogados, médicos, engenheiros, físicos nucleares, economistas... Pergunte a qualquer um deles o que acham da vida e quase nenhum fugirá da resposta: ‘A vida é uma coisa boa’... Pois com o artista o cenário muda de figura. Alguém disse por aí que o artista é um condenado-vivo, um homem cujo destino coube a interessante tarefa de desconfiar da vida. Eu tenho que concordar e ainda acrescento: o artista compreende muito bem que viver é um negócio complicadíssimo e por isso mesmo escolhe visitar a vida ao invés de vivê-la. O artista é um expatriado dentro da sua própria pátria, um estrangeiro habitando seu próprio território nativo, um visitante que nunca consegue sentir-se à vontade já que o solo onde pisa, por mais frequentado que seja, será sempre propriedade alheia. Mas atenção! Engana-se aquele que supõe haver grandes doses de pessimismo nessa condição instável! Ao contrário! O artista não resiste às emoções para se enfurnar no seu cubículo de auto-suficiência à espera do último e derradeiro suspiro, isso é uma imagem equivocada impressa num fundo preto e branco muito mais adequada aos eufóricos admiradores da normalidade da vida. Nada é normal para o artista. O artista é um ser admirado, que arregala o olhar ao mais frugal dos eventos humanos para qualificá-lo como maravilhoso – há toda uma poesia escondida por detrás do salto mortal de uma pulga que empreende fuga depois de sugar um pouco de sangue do Sr. Fulano de Tal! Que maravilha é olhar no espelho e notar como num passe de mágica o surgimento de um enorme pelo branco saído de dentro do nariz do sujeito que ontem acreditava estar imune aos efeitos da caduquice! Ah que deslumbrante que é testemunhar a idiotice da funcionalidade de uma máquina erguida sobre rodas que ao invés de andar fica estacionada no meio do tráfego, mais lenta que o passo da mais preguiçosa tartaruga de Galápagos! O artista é esse homem que acha a vida deslumbrante e dentro do deslumbre descobre tudo o que há de podre e maravilhoso, e é nesse trânsito entre os extremos de sensações que ele necessariamente se equilibra. Não... o artista não vive, o artista se sente privilegiado ao testemunhar a vida que lhe passa ao redor, dedicando tempo e atenção aos fatos inexplicáveis que fazem parte dessa nossa triste e engraçada aventura. A vida não é boa e muito menos normal para o artista... a vida é extremamente complexa e contraditória a ponto de ser indecifrável. Passa-se toda uma existência tentando compreendê-la e o saldo final é talvez uma interrogação ainda maior do que aquela motivadora dos primeiros passos em busca de alguma luz. Se o artista não é um ser especial, ao menos em uma coisa ele se destaca de todo o resto das pessoas: até o ar que entra em seus pulmões é motivo de dúvida, mistério e graça!

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