quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Ai de mim: sou uma formiga...
Senhoras e senhores, venho por meio desta – já que por intermédio daquela outra já não tenho mais fôlego nem para levantar o dedinho mindinho esquerdo cuja pobre unha toda carcomida pelos meus ferozes caninos evidencia o ímpeto falido dessa minha filosofia-de-caixa-de-fósforo -, enfim, senhoras e senhores, data máxima vênia... ( senhoras e senhores! Façais o favor de não interromper o fluxo do meu raciocínio! Essa vossa ânsia em exigir tantas justificativas só fazem circular minhas palavras para dar a volta em torno de si próprias, o que as leva não a outro lugar senão ao ponto de partida! E vede, senhoras e senhores, ainda nem comecei e já coloco-me a explicar os porquês dos porquês... ora, ora). Senhoras e senhores, peço-vos a palavra e vou direto ao assunto sem mais delongas: venho por meio desta informar-vos de que sou uma formiga. Uma formiga metafísica, é verdade, mas ainda assim uma formiga. E não pensem, senhoras e senhores, que o fato de eu ser uma formiga metafísica alivia um pouco o meu estado-inseto de ser. Muito pelo contrário! Antes ser uma formiga que não se sabe formiga que uma formiga metafísica! Porque a questão é justamente essa: a formiga metafísica interrompe o que está fazendo para olhar no espelho - sem qualquer vestígio de vaidade formigal, é bom que se diga - e reconhecer que o que se vê no reflexo nada mais é do que a imagem de uma baita formiga antenuda! Sou uma formiga... não há mais por onde fugir! ‘Ai de mim, porque fui nascer?’, perguntaria Édipo Rei nos idos tempos em que as formigas eram apenas formigas e não se suspeitava de que não sei quanto tempo depois as cidades virariam formigueiros gigantes para abarcar nós seres humanos, agora seres formigais. Ah, senhoras e senhores, evoco nosso herói grego porque saber-se uma formiga é uma tragédia das mais cruentas de que se pode ter notícia! Muito melhor ser uma formiga e não saber que se é uma formiga... viver apenas como uma formiga-operária sem desconfiar das antenas que se carrega é uma benção que não derrama sua dádiva sobre a testa das metafísicas. Ah, senhoras e senhores, tivesse eu um punhal à mão, repetiria sem pensar o final sangrento do personagem de Tebas... e, antes de cegar-me, levantaria as mãos para os céus para amaldiçoar essa minha soberba orgulhosa em querer investigar as fontes primitivas do meu ser, sim porque é justamente esse desejo irrefreado de saber quem se é que nos leva a olhar no espelho e... tcharãn: QUERIDA, VIREI UMA FORMIGA! Esqueçam, senhoras e senhores, embora sabedor desse vosso sádico apetite por sentar na plateia para testemunhar essa minha sulfídica interpretação digna de prêmio Shell, não darei gosto desse meu talento, afinal, que interesse poderia despertar uma formiga se auto-mutilando? Não não... melhor acostumar-me ao fato de ser uma formiga metafísica e continuar a produzir minhas ideias que um dia, quem sabe, rivalizarão com as de Aristóteles, pobre filósofo que jamais imaginou que uma formiga poderia um dia competir com suas elucubrações. Senhoras e senhores, o fato é que eu me vi uma formiga hoje, no metrô de São Paulo. Percorri todas as linhas possíveis: verde, amarela, azul, vermelha, enfim, o arco-íris inteiro debaixo da terra. Entrei no vagão do trem abarrotado de gente e pensei: não é possível que o homem virou isto, um exército de sardinhas enlatadas, todas solidárias ao bafo da vizinha! Mas sardinha não anda, e foi no instante em que eu vi aquelas pessoas se locomovendo como num arrastão de carnaval que eu tive a iluminação: são todas formigas, pequenininhas e antenudinhas... todas formigas! Ah, senhoras e senhores, mas que sorte a delas em não sequer desconfiar dessa triste sina insetívora, porque comigo a coisa bateu diferente... uma vez que aqueles rostos pareciam com o meu, não havia porque suspeitar de que eu também não fizesse parte do formigueiro! Dito e feito! Espremi-me num cantinho do vagão e chorei baixinho, dizendo para mim mesmo: sou uma bendita de uma formiga! Justo eu que almejava grandes empreitadas na vida, agora reduzia-me a um negócio tão pequeno que mal inspirava respeito. Senhoras e senhores, vós não sabeis o que é ser uma formiga num trem cujo destino é a estação Corinthians-Itaquera... habita nesse trajeto um tipo de formiga muito específico, mais conhecida como Formiga-Bando-De-Lôco-Eô-Eô, bem diferente daquelas formigas engravatadas que ocupam a linha verde, por exemplo. Mas uma vez formiga, sempre formiga! Não deixei-me rogar à esse triste destino. Uma vez ciente de que era uma formiga, resolvi vingar-me das minhas companheiras alegres que mal sabiam-se formigas. Saquei um livro do Dostoievski da minha mochila e comecei a ler... se é para ser uma formiga, serei uma formiga culta, do tipo que lê Dostoievski! Ah, senhoras e senhores, não surtiu efeito nenhum! A condição minúscula da formiga opera aplacando toda e qualquer individualidade possível... não há meio de se destacar do bando de antenudas. Voltei triste para casa, certo de que minha cidade é um gigantesco formigueiro maciço, lar de um exército minúsculo de formigas... e eu, ainda, o pior tipo delas: a formiga metafísica! Ah, senhoras e senhores, como eu gostaria de ser um Leão-da-Montanha lá do hemisfério norte... um bicho peludo e solitário, digníssimo no seu porte, que olha para a planície gelada lá do cume do morro e diz satisfeito com a vida: GRRRRUUUUUAAAAAAU! Não corram atrás de respostas, senhoras e senhores, é bem possível que no fim da linha haja um espelho esperando para refletir vosso focinho de formiga!
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