sábado, 27 de setembro de 2014

Dei o azar de não ser tão velho para ter vivido o que hoje me faz falta
E azar em dobro por ser jovem o suficiente para envelhecer sabendo disso
Nasci no meio do caminho
Quando o que queria
Era os extremos

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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Fábulas: O Sujeito da Língua Altruísta

Um sujeito de posses intelectuais que o autorizavam a apanhar um microfone e galgar num carro de som, inclinado ao exercício da modéstia, assim o fez. E lá de cima, raspando o cocuruto no rarefeito das ideias justas, tratou de bradar palavras de ordem contra o sistema de transportes da cidade, fadado que era à encalacração motorizada. E assim ele, o digno motorista do verbo politizado, acelerou as suas profecias especulativas, encalacrando tudo a sua volta, o que cuspisse enxofre e o que não cuspia enxofre também, aqueles de propulsão bípede, expelidores de conteúdos pulmonares. E assim, o sujeito de princípios ético-coletivos, após a ginástica verbal, tratou de voltar para casa, e, ainda que não o tivéssemos visto deitar a cabeça no travesseiro, presumimos, com um mínimo de análises psico-comportamentais, que dormiu feliz, satisfeito por dar livre trânsito ao conteúdo de sua língua, ainda que fosse ela, a língua, um músculo definitivamente altruísta...


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terça-feira, 23 de setembro de 2014

Fábulas: # O estudante e o percurso contrário


Um certo estudante de determinada carreira filológico-antropomórfica, dado que era à consciência crítica, resolveu fazer o percurso acadêmico ao contrário do que era praxe e formou-se primeiro, frequentando de trás para frente os anos subsequentes, e unicamente para ter certeza de que o conteúdo de seu canudo não lhe servia para patavinas nenhuma, coisa que, de fato e como bem havia suspeitado, teve como prova cabal, mas obviamente não de imediato, senão na última aula do último dia, ou melhor, na primeiríssima, depois de haver quatro anos pastado nas disciplinas, juntando a descrença com o ânimo desproposital daqueles que ingressavam, todos calouros ingênuos, ávidos crentes de que o futuro lhes reservava utilidade onde não havia... de jeito nenhum!

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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Fábulas: # O fim trágico do participante do concurso anual de soluços


Durante o tradicional concurso anual de soluços ele tivera uma ideia genial, e como toda ideia genial vem precedida também de um soluço, a soma de dois deles: o soluço da competição mais o soluço da ideia genial, tivera ele, como resultado, uma síncope fatal e morreu, o que não deixou de ser uma solução genial, ainda que o conteúdo da tal ideia tenha se perdido para o todo sempre, por entre os outros soluços da competição, que cumpria calendário no concurso anual de soluços. 

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terça-feira, 16 de setembro de 2014

Fábulas: O fim precoce de uma barata que não chegara a ser uma barata filósofa

Inadvertidamente e sem chances de remorsos antecipados ou culpas futuras, esmigalhei uma barata na calçada que, por sinal, não teve qualquer chance de responder-me à pergunta do motivo razão ou circunstância maldita de a providência divina ter-lhe cunhado barata nessa vida que não mais a pertencia, coisa que, também não tive eu, chance alguma de lhe treplicar a possível réplica justificando o motivo razão ou circunstância de a providência divina ter-me cunhado a mim, nessa minha vida que ainda prosseguia, como esse que agora acabara de me tornar, qual seja, um renomado esmigalhador de baratas distraídas de calçadas alheias.

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Queria ser outro de mim
Ou melhor
Ter-me em dois
Assim:
Enquanto um dormisse
O outro a história 
Continuasse
Até quem dissesse
Ou houvesse
Fim!

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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Fábulas: # O Hotel dos Suicidas

O Hotel dos Suicidas resolveu o seu problema de retorno de clientela - os hóspedes que lá se hospedavam nunca mais voltavam a hospedar-se - gradeando as janelas dos aposentos. Mas aí os hóspedes trocaram o pulo mortal pelo afogamento na hidromassagem. E quando o Hotel dos Suicidas reformou os banheiros eliminando as banheiras de hidromassagem, os hóspedes encontraram nos sacos plásticos destinados à lavanderia um excelente pretexto para satisfazer aquilo que procuravam. Eliminados também os sacos, houve quem enfiasse a cabeça dentro do frigobar e esperasse ali, em parceria com as latinhas de refrigerante de cola gaseificada, a contagem final das horas. Também o frigobar fora retirado dos aposentos do Hotel dos Suicidas. E quando os aposentos não passavam de um vazio com uma cama no meio - os travesseiros não existiam mais, e também por motivos óbvios -, o Hotel dos Suicidas mergulhou numa espetacular crise financeira, só encontrando saída quando o gerente de marketing, tarimbado nas estratégias de venda, resolveu não contrariar a tendência do mercado, equipando novamente os aposentos do Hotel dos Suicidas, mas dessa vez com uma variedade incrível de apetrechos de tortura. Hoje, quem escolhe hospedar-se no Hotel dos Suicidas tem a possibilidade de decidir entre a masmorra do último andar, o porão dos desesperados no subsolo, o calabouço com fosso de jacarés do Pantanal, ou, ainda, optar pelo quarto comum, que guarda nas gavetas da cabeceira da cama um repertório de pílulas mortais acondicionadas em potinhos grafados com uma caveira atravessada por dois ossos. Se o retorno de hóspedes continua sendo um problema impossível de ser sanado, o Hotel dos Suicidas, ao menos, entendeu a sua especial particularidade, vendendo aos hóspedes a ideia de que hospedar-se em seus aposentos pode ser uma experiência irrepetível, e, por isso mesmo, impossível de ser esquecida, ainda que não haja quem a registre (coisa que o gerente de marketing está tentando resolver nesse exato instante)

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terça-feira, 9 de setembro de 2014

Como ver o que vejo?
Serei eu um intruso que desejo ver para além daquilo
Que me é dado a conhecer?

E ver somente?
Não seria pouco conferir aos olhos
O que minha alma, vendo
Sente?

Como ver por inteiro
Sem que de mim faça alguém visível
Mas ausente?

Sim, desejo ver
Sem que me vejam!
E assinando com minhas linhas o desejo de alguém que sou
Sumir no que digo
Sendo nada
Ou pouco mais do que isso:

Ninguém


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domingo, 7 de setembro de 2014

Entre o que é transcendente 
E imanente
Onde 
Fica
A
Mente?

O vazio não será só isso
Coisa que aparece
Justamente
Quando quem 
De um lado e do outro
Produza 
Um espaço
Latente?

É aqui que está o que não está!
E estando o que não existe
Já existe
Seja por esforço mútuo
Ou mera distração
De quem para existir
Não faz
Força 
Ou qualquer
Menção 

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Fábulas: # O desfile da independência


No dia da independência desfilaram todos: soldados reformados, soldados ex-combatentes, soldados na ativa, aspirantes a soldados... E nas arquibancadas assistiam todos, que para não listá-los como aos soldados, juntamos tudo em uma só classe que os bem resume: ninguém!

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Fábulas: # O ator do branco monumental



A respeito do ator que há 20 anos teve um branco monumental e não pôde proferir seu decisivo 'ai de mim' numa tragédia grega qualquer, e que ainda lá está, de pés fincados sobre o palco e diante de uma plateia de moscas que não suportou esperá-lo, a espera ele da luz que o faça lembrar do que o autor referendou por escrito ao personagem que escolhera interpretar, enfim, depois de tanto tempo de ausências, a ele digo que foi justo nesse vácuo de inspiração onde sua performance ganhara o mais alto grau de refinamento dramático, havendo, inclusive, ocasião propícia para a visita de críticos cujos olhares bem poderiam consagrar-lhe uma honrosa e merecida indicação ao prêmio de melhor ator dessa longa, e deveras exaustiva, jornada.


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sábado, 6 de setembro de 2014

Fábulas: # Os ratos melodramáticos e a dupla de ratos dançarinos

Havia uma pequena aldeia de ratos melodramáticos que costumava se reunir na plateia vazia de um antigo teatro onde podia, cada um e uns aos outros, recorrer ao ombro do rato-vizinho para acalentar o chôro, ou, então, dar-se o ombro para que outro rato mais necessitado viesse à ele chorar. Choravam aos borbotões os ratos melodramáticos, uma espécie de mimimi agudíssimo entremeado por soluços sincopados: ziziziziz-HIC! zizizizizi-HIC! zizizizizi-HIC!, coisa que produzia um zumbido coletivo bastante característico e capaz de atingir até aos tímpanos surdos dos asnos orelhudos, ainda que estes estivessem a quilômetros de distância. Pois um dia chegou à aldeia uma dupla de ratos dançarinos para curta temporada no palco do teatro dos ratos melodramáticos, e como os ratos visitantes não sabiam chorar, faziam dos pés ágeis a sua única ideia de comunicação com os outros. Impressionados com a performance dos intrusos, e ainda mais com a secura árida dos olhos deles, os ratos melodramáticos, extasiados com a ligeireza do bailado da dupla, engoliram o choro que lhes era caro, vidrados naquilo que viam. Mas contiveram as lágrimas só até o fim do espetáculo, quando voltaram a chorar e em proporções eflúvias, embora dessa vez não fosse por razões íntimas, senão por saudades antecipadas daqueles que, ainda que por um breve instante, os fizera parar de chorar.

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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Fábulas: # Os mortos, os vivos... e as flores.

Como recebiam flores e não podiam regá-las, os mortos decidiram, numa assembleia extraordinária que reunia os defuntos todos, dos frescos aos já curados, que não mais as receberiam, delegando aos vivos a tarefa de aguá-las, mas como os vivos contra-atacaram alegando que não cabia aos mortos, dos queridos aos desconhecidos, impor condições às decisões dos vivos, ainda que sobre flores, combinou-se, então, que tudo permaneceria como estava, as flores sendo entregues como antes, e murchando nas tumbas, como sempre. E ainda se pratica o mesmo hábito, não sofrendo ninguém, nem os vivos porque dos sofrimentos todos esse da piedade por flores murchas desaparece feito piada, nem os mortos, que já sofredores em vida aposentaram-se de sofrer depois de haverem tanto sofrido, ou melhor, sofrendo apenas as flores, que se não sofrem para que as vejamos sofrer, ao menos torcem para chover, e isso podemos perfeitamente ver, os mortos e os vivos, basta querer

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