Lancei um olhar através da janela fazendo com que minha atenção ultrapassasse o quarto aquecido em que eu estava para o frio gélido da neve que caia fazia horas. Lá estava ele novamente, retirando o grosso tapete branco da frente da sua garagem, sempre com uma dedicação religiosa de fazer inveja ao compasso firme da ladainha das rezadeiras.
Nunca engoli essa história de Paraíso. Campos floridos cortados por rios que vertem leite e mel não me parece um cenário de delícias, nem para o estômago e tanto menos para o espírito. Se o estômago responde mal aos derivados de laticínio, a alma em igual medida corre o risco de enjoar com o vislumbre de uma eternidade enquadrada em uma paisagem idílica.
Que seja feita então a minha vontade. Fosse para escolher um destino derradeiro, a última parada para todo o sempre, preferiria entrar na fila para garantir o meu lugar no andar de baixo, ao lado do Cão. Se o demo fizer jus ao apelido, dedicaria tranquilamente meus dias eternos a tarefa de levá-lo para passear – sou fã incondicional dos nossos amigos caninos, esses sim merecedores de alguma atenção divina.
Somente em um aspecto o Jardim do Éden poderia fisgar-me nessa disputa entre resorts post mortem, e a esse fato não há garantias, apenas suposições. Uma vez que o inferno atrai as atenções pelo calor escaldante das suas acomodações, o Paraíso, por dedução, deveria polvilhar flocos de neve em seus campos floridos, transformando em sorvete cremoso os rios de leite e mel. Mais apetitoso, sem dúvida! Respeitando o maniqueísmo metafísico do bem contra o mal, nada mais justo do que imaginar tal oposição climática, com Adão e Eva enrolados em cachecóis e pantufas a observar a cobra anunciando entre tremeliques de frio:
"Nessa pista de gelo jamais patinarás, sob a pena de escorregares e sucumbires de loló ao chão".
E lá se foi a Eva. E deu no que deu.
E aqui estou eu, nesse Paraíso branco, olhando através da janela. E lá está o mesmo senhor que há dias trava sua luta contra as intempéries dos açúcares granulados, excesso de capricho dos deuses que em júbilo celebram a alegria de saborear o doce prazer da vida. Tudo aqui parece respirar a felicidade, os esquilos saltitam fazendo ondas com seus rabos enormes, os coelhos eriçam suas orelhas a noite, e, como em uma sinfonia silenciosa, a neve executa um bailado de timbres e alturas que encantam qualquer um que se preste a contemplá-lo.
Eu estou no Paraíso e ainda assim tenho total convicção de que não demoraria muito tempo para que toda essa felicidade enjoasse a minha paciência. Lembro-me de uma entrevista impressa em algum jornal com o escritor Milton Hatoum em que o autor afirmava ser impossível escrever romances tendo como vista um lago suíço cristalino. Só é possível ter inspiração para falar sobre a vida se o cenário ao redor estiver adequado a confusão que traduz o sentido de viver. São Paulo, para Hatoum, com o seu Tietê mal cheiroso, é mais apetitoso do que os alpes europeus.
A idéia de um Jardim do Éden perfeito, terreno acolhedor e harmônico onde Deus está em absoluta comunhão com a sua criação humana é frustrante porque não há aí a idéia de movimento. Tudo está pronto, pronto e estático, enfim, morto. Muito mais interessante seria imaginar um roteiro de fuga das alfinetadas do capeta, ou então estratégias de contra ataque aos golpes lançados.
A felicidade, portanto, não pode ser resumida a um estado de desfrute, mas na atitude de busca por um instante de alívio e, para isso, é primordial partir de alguma instabilidade. O que é instável gera movimento, e é pelo risco de cair e me esborrachar ao chão – porquê sempre haverá esse risco – que me vejo alcançando a plenitude de um sentido de felicidade. Sentido traduzido sempre pela busca, mais do que pela conquista.
Em breve, depois de um proveitoso estágio no Paraíso, estarei de volta ao Brasil, dessa vez ainda mais consciente de que nosso país é um dos terrenos mais férteis do mundo justamente porque dispõe aos seus habitantes condições de equilíbrio precárias, suficientes para gerar um estado de atenção distante da monotonia celebrativa.
Ainda em tempo. O senhor que observo da janela do meu quarto faz uso de um veículo motorizado para expulsar a neve da frente da sua garagem. Sempre repete o mesmo itinerário, empurrando o aparelho na mesma direção, com a mesma força empenhada. O resultado é sempre o mesmo: um chão limpo e impecável, livre das inconveniências do gelo. Sempre feliz, sempre esbanjando o mesmo sorriso na face, satisfeito consigo próprio. Há poucos instantes eu estava defronte a garagem da casa onde estou hospedado com uma pá na mão, contemplando o resultado do trabalho que me deixara com o corpo inteiro moído e suado. Ainda havia rastros de gelo e neve no chão. Cocei a cabeça e entrei para o calor do interior da cozinha já pensando em qual diferente tática colocaria em prática no dia seguinte. A batalha contra a neve para mim é sempre uma novidade, amanhã talvez eu escorregue, quem sabe?
Escrito por Francisco Carvalho. Canadá, 2010.
Escrito por Francisco Carvalho. Canadá, 2010.