quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Da arte de arrotar depois de haver empanturrado o bucho.




Ainda acometido por efeitos narcotizantes, recorro ao computador para tentar traduzir em palavras aquilo que para mim representou uma das experiências estéticas mais deslumbrantes que tive a oportunidade de vivenciar.

Convido humildemente os senhores, sóbrios leitores, a compartilhar desse meu processo de retorno à normalidade, estado que espero alcançar até o último ponto final.

Peço ainda perdão aqueles que, por alguma razão, desconfiarem da minha sinceridade nesse relato, se incorro em algum exagero naquilo que me proponho a tornar público, peço que relevem tal extravagância como sendo a evidência de minha dificuldade em filtrar as imagens das minhas impressões no papel. Vamos a elas.

Ligo a televisão numa manhã e antes que possa preparar o meu café, refeição que normalmente divido com os apresentadores de um programa de esportes, percebo que é o canal distraidamente acessado pelo controle remoto que prepara uma novidade para o meu apetite.

O programa é o “Hoje em Dia” da Rede Record, protótipo de revista de entretenimento e jornalismo. Impossível não esquecer o estômago quando uma torrente de gritinhos e soluços lacrimoniosos compete com as torradas e cereais. Comemorava-se o aniversário da senhorita Cris Flores, uma das apresentadoras da atração. Durante exatas duas horas, tempo em que consegui me manter em jejum – o programa deve ter perseverado por outras tantas refeições dia adentro, imagino - assisti em rede nacional a mais absoluta exposição vaidosa que jamais imaginei um dia poder compartilhar.

Em uma espécie de maratona de homenagens, que incluía desde charadas e adivinhações, até desafios dignos de tirar o fôlego – a pobrezinha da apresentadora chegou a ser coagida a atravessar uma passarela içada por um guindaste até as alturas -, todas as câmeras permaneciam atentas para entrar em ação ao menor registro dos traços fisionômicos da jovem comportada que, naquele instante, poderiam se desmanchar em lágrimas de gratidão. Coitadinha. Depois do bravo esforço de andar nas nuvens – atentem que para subir na vida é preciso sofrer – Cris Flores foi arrebatada pela notícia de que havia conquistado como recompensa, das mãos do seu diretor de programa, uma VIAGEM PARA A DISNEY COM O SEU FILHINHO PEQUERRUCHO!

Técnica:
ENTRAM OS VIOLINOS.

Câmera 1: Zás!
CLOSE NO ROSTINHO RECHONCHUDO DO FILHINHO SORRIDENTE DA CRIS FLORES.

Corte para:

Câmera 2: Zás!
AGORA CLOSE NA APRESENTADORA QUE SE DESMORONA EM SOLUÇOS DE GRATIDÃO:

Cris Flores: MEU FILHINHO NUNCA FOI PARA A DISNEYYYY.... SNIF, SNIF, SNIF.

A donzela Cris Flores desdobrava-se em agradecimentos aos seus companheiros de emissora, revelando a sua emocionante trajetória de vida – sofrida, é claro – até alcançar os louros da fama, isso tudo dentro de um programa que prima diariamente por afagar os egos das próprias celebridades que desfilam nos diversos horários da grade de programação da Rede Record – a quem aborrecer tal conduta basta mudar de canal ou ir reclamar com o bispo.

Tive a sensação, ao enxugar as lágrimas de Cris Flores, de vestir um jaleco branco e, com minhas mãos protegidas por luvas cirúrgicas, perscrutar cada cavidade da apresentadora com instrumentos afiados que meu código de moral impede especificar. O meu espanto com tamanha extensão vaidosa impedia-me de me sentir constrangido. Às vezes ria, confesso, com gargalhadas de um escárnio assustador.

Em meio ao apagar das velinhas pensei comigo mesmo: não seria eu também um artista vaidoso que privilegia a minha satisfação pessoal a despeito de qualquer responsabilidade social? Não seria eu mais um dengoso apresentador que espera ansioso pelo rasgar dos violinos a anunciar o quanto sou importante para o mundo? Também não quero eu prevalecer em rede nacional como mais um sofredor que ganhou a vida?

Qual é a responsabilidade de um artista? Parece-me que não é possível mais acreditar em uma inocência juvenil, aquela que nos absolve de uma conduta ativa frente ao tamanho marasmo em que a humanidade resolveu aportar. É preciso e necessário remar para a revolução. Inútil dizer que esse movimento de revolta não é aquele que encontra grandes novas soluções, engendradas em novos modelos salvadores – não é de ibope que precisamos, nem de novos apresentadores sedentos por novos filões de audiência. Basta um espelho capaz de refletir a nossa própria barriga estufada, prenhe de um arroto prestes a sair, depois de havermos empanturrado deliciosamente o bucho.



Escrito por Francisco Carvalho. Outubro, 2009.