sexta-feira, 20 de março de 2009

Quando a chuva cai...

Cara Miss Y,

Desculpe a falta de comunicação desde nosso último contato. Mesmo sabendo que você nunca irá ler o que escrevo – não por falha sua, mas por uma preguiça minha em procurar o correio mais próximo – ainda mantenho firme e forte o meu ânimo de expressar minhas impressões sobre o seu caráter. A única ressalva é o desejo que tenho em ler a sua réplica, mais por curiosidade do que por convicção. Sei que não entenderia nada e provavelmente um palavrão bastaria para selar seu envelope. Melhor engolir a frustração passageira e manter-me distante das lojas de correio.

Hoje choveu e lembrei-me de você, do dia em que confessou a sua paixão pela chuva. Uma semana depois você chegou ao escritório ensopada, vítima de uma chuva de verão. Praguejava por ter esquecido seu guarda-chuva que, desde então, não importa quão límpido esteja o céu, você o carrega como seu fiel escudeiro na sua bolsa. Como alguém pode gostar de algo e no instante seguinte amaldiçoá-lo? A dúvida aqui parece não questionar a natureza do que se gosta – já que ela sempre será a mesma – mas aquele que pronuncia o seu julgamento, ou seja, você. Mesmo que a idéia de chegar ao trabalho com as roupas encharcadas possa parecer uma situação incômoda para muitos, esse simples acontecimento me faz, hoje, entender ainda mais sobre a sua conduta na vida. Para você, a experiência em si, por mais apaixonante que pareça ser, não importa tanto quanto a sua conseqüência, dessa forma, seguindo o seu raciocínio, aproveitar a chuva no rosto não pode competir com o resultado desagradável da roupa colada ao corpo.

Você, Miss Y, vive no futuro do pretérito, acreditando que a prudência do agir é a moeda de troca que lhe irá garantir a felicidade mais adiante. Quase uma lógica judaico-cristã... o hoje é vigiado sob olhos atentos do grande criador que um dia lhe garantirá lugar ao seu lado, mediante, é claro, a uma régia obediência. E você gosta de obedecer, Miss Y, não aos seus desejos, mas ao olhar do magnânimo. E vive feliz por obedecer acreditando que o seu agir condiz com uma real experiência de vida. Quanto desperdício.

Quantas vezes a sua voz não foi abafada por uma auto-resignação ao encontrar pela frente uma opinião contrária, vinda, é claro, de um posto de “status” superior ao seu? Em um primeiro instante cerrava os punhos em uma convicção apaixonante que, no momento seguinte, virava cinzas de complacência diante da opinião inversa do mais forte. E você nunca se sentiu frustrada por isso, muito pelo contrário, a vida para você é feita de cargos de hierarquia que justificam a benevolência e o escárnio de quem os ocupa. Idéias próprias, desejos próprios só valem sob o jugo do outro. Tomar chuva na cara não é uma medida aconselhável, por mais que se tenha prazer nisso, porque mais adiante será preciso pensar nas toalhas. Ou então: “aproveite a chuva na cara, mas não se esqueça que mais tarde vem as toalhas”!

Prefiro o risco, Miss Y, porque a dúvida conduz à autonomia. Você tem razão quando diz que as coisas são como são e admito que a sua rotina de vida lhe permite uma sobrevivência mais tranqüila do que a minha. Mas quem disse que a rotina da tranqüilidade é sinônimo de felicidade? Não digo isso por orgulho, mas por certeza de que a vida deve ser fruída em todas as suas experiências reais, que não aquelas tabuladas pela prudência ou pela obediência – para isso é preciso estar só, levantar o rosto para receber a tempestade no rosto sem medo de se ferir.

Cordialmente e até breve,

Mister X.

Escrito por Francisco Carvalho, 20.03.09, às 14hs


“... É importante também para a adaptação social que o indivíduo não tenha convicções: as opiniões devem mudar de acordo com a ocasião; se não for assim, corre-se o risco de não se ter emprego, amigos, amantes, ou melhor, é importante aparentar convicção e não tê-la...”

“... As pessoas, em geral, tem consciência da exploração social, da violência, percebem a dominação em toda parte, e não necessariamente concordam com isso, mas, como devem se adaptar, exercem o que seria contrário ao que desejariam; para isso, devem acirrar as justificativas de seus comportamentos, que elas mesmas reprovam...”

José Leon Crochik – professor da USP – matéria da revista EDUCAÇÃO sobre Adorno.